...uma questão de higiene.

Quem me conhece sabe que prefiro a proclamação ao invés do protesto. A razão é simples: o último acaba sendo uma “propaganda ao contrário”. Sabemos que são muitos os que promovem coisas escandalosas na esperança de que o protesto-propaganda os coloque na “pauta das rodinhas”.

Contudo, às vezes é difícil não protestar. Refiro-me ao vídeo de natal do famosíssimo grupo de comédia intitulado “Porta dos Fundos”. Se você quer desperdiçar alguns minutos de sua existência, é só assistir. Caso contrário, simplesmente declare: “Não vi e não gostei”. Se você é meu amigo e, por conseguinte, confia em mim, siga a segunda opção.

Para os que perderam seu tempo, vamos às colocações:

1.      Não há dúvidas históricas de que Jesus existiu e que foi morto em uma cruz. Quanto aos seus milagres e sua ressurreição, certamente isso não é consenso, e não é nosso objetivo aqui uma discussão desse calibre. Fiquemos com o que é senso comum: ele foi torturado e assassinado. Fato.

Não é estranho que, em um país marcado pela violência gratuita, um vídeo que zomba da morte de um inocente seja tomado com tanta naturalidade e, pior, tenha como objetivo o riso? Não é estranho vermos artistas, que vez por outra propagam discursos de tolerância, zombarem da morte de um inocente? Não seria curioso, por exemplo, um vídeo em que João Hélio, menino arrastado até a morte por um carro, fosse zombado? Não seria doentio zombar da morte de Tim Lopes, jornalista que foi torturado até a morte? Não seria bizarro fazer um vídeo onde a morte de Daniela Perez fosse usada para promover risadas? Por que com Jesus pode? Lembre-se, ele é uma figura histórica. Sua morte não é questionada nem mesmo por ateus. Por que com ele pode?

2.      Para justificar seus vídeos, um dos redatores do “Portas dos Fundos” declarou que tem como alvo os ricos e poderosos; que seu limite é nunca rir das minorias (e.g., pobres, negros). Afirma ainda que religião não é minoria; que todas são poderosas e tem dinheiro.

Não é uma declaração no mínimo esquisita vinda de alguém que vive de popularidade, patrocínio de grandes empresas e exige cachê que nenhum pobre pode pagar? Ao que tudo indica, para fazer parte desse grupo deve-se fazer voto de pobreza. O problema é que sabemos, na prática, onde esse discurso com inhaca comunista vai parar.

A declaração do redator parece pressupor que todos os religiosos e religiões são opressores e/ou exploradores. Sugiro ao nobre redator que abra sua casa para os desabrigados de uma tragédia; coisa que geralmente quem faz são as “religiões opressoras”. Sugiro ao redator, que parece se importar tanto com os pobres, a fazer dez por cento do que os opressores têm feito, fazem e farão pelos seus amados pobres. Sugiro ainda que o nobre redator abrigue em sua casa dependentes químicos como os opressores fazem. Ah, caso tenha problema com dinheiro, é simples: distribua com os pobres que você tanto ama.

Pois bem, voltando ao assunto, minha pergunta aqui é: o que Cristo tem haver com isso? Onde ele se encaixa? Nos poderosos ou nos ricos? Porque não brincar com os poderosos (tiranos) da época (os romanos)? O fato é que a morte e a tortura de um inocente (que no caso também era pobre) nunca deve ser motivo de piada. Para mim, rir do que se deve chorar é sinal de insensibilidade, loucura, maldade, crueldade e faz de tal pessoa alguém extremamente perigoso.

Um conselho para os redatores: caso queiram atingir a “opressão religiosa” ou “opressão dos poderosos”, escolham os alvos certos, porque, nesse vídeo, e em muitos outros, vocês erraram o alvo e foram extremamente infelizes. Agora, caso realmente vocês tiveram Jesus como alvo; bem, aí o caso de vocês é bem mais sério.


Quanto a mim, queria muito mandar o “Porta dos Fundos” para a “porta dos fundos” da minha casa. O problema é que coloco meu lixo lá. Como não encontrei lugar para eles, fiz o que faço com todo lixo não reciclável - dei descarga. É uma questão de higiene.

Um velho sonhador


 – Posso sentar?
– Fique à vontade.
– O que está achando de nossa escola? É sua primeira vez aqui, não é?
– Sim…
– Sei que é – interrompeu Fobiano, empolgado pela abertura que o senhor desconhecido dera ao diálogo – Estou sempre por aqui e nunca vi o senhor. E estou certo de que se o tivesse visto uma vez só, seria o bastante para não esquecer.
– Como estava dizendo – continuou o visitante –, sim, é a primeira vez que venho aqui. E se quer saber se estou gostando; pois bem, não posso dizer nada ainda, pois como você mesmo sabe, a aula ainda não começou. Agora, se quer saber da minha opinião sobre as instalações da escola, sinceramente, isso não me importa. O mesmo diria da oratória do professor. A sabedoria e a ignorância, nobre colega, são mais ou menos como os alimentos úteis ou nocivos: podem ser apresentados através de palavras polidas ou rudes, como os bons e os maus alimentos podem ser servidos em pratos finos ou grosseiros.
– Entendi. Não queria ser inconveniente, mas o que trouxe o senhor aqui?
– Um sonho.
– Sei – Fobiano respondeu pensativo – o senhor tem o sonho de ser pastor e procurou uma escola de teologia. É isso mesmo?
– Não! Não me refiro a “sonho” como uma expectativa de vida, mas como revelação divina.
– Hum! – Fobiano ergueu os olhos e as sobrancelhas num ar de incredulidade e desdém.
– Acho que não acredita nesse tipo de coisa, não é? – O visitante estampava um leve sorriso de canto. Era uma mistura de tranquilidade e misericórdia.
– Bem, como dizer? Sou um cristão conservador e creio que tudo que preciso está revelado nas Sagradas Escrituras. Para ser bem direto, não, eu não creio.
– Sei… O senhor desconhecido olhou para o chão respirou um pouco mais intenso que o normal e abraçou a cabeça com os ombros.
Fobiano não quis falar. Ele sabia que o silêncio sinalizava que o idoso buscava as melhores palavras. O estranho visitante então retomou o discurso:
– Vou te contar uma história: Também sou cristão. Mas, minha conversão não veio logo. Uma pessoa próxima, uma cristã piedosa, costumava lavar o chão com suas lágrimas em orações intensas por minha alma. Um dia, ela teve um sonho em que ficava patente que eu estaria ao lado dela compartilhando da sua fé. Na época a retruquei dizendo que realmente ela ficaria do meu lado. Ela, contudo, contrapôs dizendo firme: “Não, não me foi dito: ‘onde ele está, aí estarás tu’.  Mas sim: ‘onde estás, aí estará também ele’”. Por causa desse sonho, foi-me permitido estar à mesa com ela novamente – coisa que há muito tempo não era possível. Ela entendeu que esse sonho veio de Deus. E eu pergunto para o senhor:  – De onde viria tal sonho senão do fato de Deus ter ouvido a voz do seu coração? – longa pausa – De onde viria tal sonho? – O idoso olhava profundamente nos olhos de Fobiano.
– Veja…bem! Respondeu Fobiano com uma voz trêmula e lenta. Tentando raciocinar enquanto respondia, disse: – Há muita coisa a se considerar...
O idoso voltou seu olhar e corpo para Fobiano, apertou os olhos como se buscasse focar em algo, cofiou a longa barba branca sinalizando esperar mais de Fobiano. Esse, por sua vez, entendendo toda linguagem corporal, continuou:
– Como dizia…humm...algumas coisas precisam ser consideradas. Primeiro, essa pessoa era de sua confiança? Sim, porque, não sei se você está atualizado, mas hoje em dia…
– Era minha mãe! – interrompeu rapidamente o idoso entendendo ter destruído a refutação de Fobiano. No entanto, manteve seu olhar de expectativa.
– Ok! – respirou fundo – Vamos à segunda colocação: todas as pessoas sonham. Como distinguir uma mensagem de Deus e um sonho convencional?
O idoso ficou pensativo. Ergueu-se lentamente dirigindo-se para fora da sala de aula. Fobiano sabia que tinha mexido com o homem desconhecido e comemorava consigo mesmo: “Peguei o sonhador”.
Com a cabeça erguida aos céus e olhos levemente fechados, o homem desconhecido chorou discreto. Fobiano só percebeu porque pode ver o reflexo das lágrimas à luz do sol. O idoso voltou seu olhar para o horizonte e disse:
– Interessante você falar sobre isso. Se o senhor conhecesse minha mãe, saberia que quando ela queria algo, lutava ao máximo por isso. Foi assim com minha conversão. Lutou em oração constante. Um exemplo rápido: certo pastor, depois de agastado por ela para que viesse a mim e argumentasse comigo a favor do cristianismo, disse a ela: “é impossível que possa perecer um filho de tantas lágrimas”. Ela era realmente impossível. Aquelas palavras do pastor a consolaram, pois ela entendeu serem do Senhor. E seriam de quem nobre Fobiano? De quem?
– Bem, poderia ser…
Como estava dizendo, - o velho interrompeu – ela era intensa. Foi assim quando quis que me casasse. Na época, ela teve vários sonhos com meu casamento. Porém, – parou, olhou profundamente para Fobiano e falou em tom de sussurro – quando falava sobre eles, era com vergonha e desprezo que os mencionava.
– Por quê?
– Ela dizia que sabia discernir, não sei por qual sabor especial (não conseguia explicar com palavras), a diferença entre aquilo que Deus a revelava e os sonhos de sua imaginação. E ela sabia que esses sonhos não vinham de Deus.
– Digamos que realmente tudo isso seja verdade. Venhamos e convenhamos nobre senhor. Não quero parecer cético, mas isso não é somente raro – é raríssimo. O senhor tem conhecimento de quantos milagres? Pode citar pelo menos três?
De repente, Fobiano viu o chão abrir debaixo dos seus pés sendo engolido em densas trevas. Não demorou muito e ele se viu no meio de uma multidão agitada. Tudo era estranho: as pessoas, o lugar, a linguagem, as roupas, o cheiro. No meio da multidão conseguiu avistar o velho estranho. Fobiano correu. Já próximo do homem barbudo, gritou enquanto segurava seus dois braços:
– Como o senhor fez isso? Como vim parar nesse lugar? Onde estou? O que é isso? – gritou Fobiano aterrorizado.
– Calma Fobiano. Só olhe! Só testemunhe! – respondeu em tom ameno o velho homem.
Fobiano viu dois esquifes sendo carregados.
– Quem são esses caras?
– Esses “caras”, - usou a palavra com ironia – são Gervásio e Protásio – respondeu o idoso.
– Parece que não eram muito bem vistos pela comunidade. Nunca vi tanta gente alegre em um funeral. Eles morreram de quê? Estão levando para onde?
– Esses homens foram mártires nobre Fobiano. Mártires! – reforçou elevando a voz – coisa rara no seu país, não é mesmo? Eles estão sendo levados para a basílica ambrosiana. Apesar de conservados, como você mesmo pode constatar, eles morreram já fazem mais de cem anos. Não sabíamos onde estavam.…
– O quê? Que loucura! Por que os desenterraram? Que negócio macabro é esse? É um ritual pagão? E como souberam onde estavam os corpos?
– Foi revelado, em visão, ao pastor Ambrósio.
– Visão? De novo? Esse pessoal não lê a Bíblia? Sonho, visão, sonho…só isso. Não vejo ninguém citar as Escrituras.
– Bem, pensando especificamente no pastor Ambrósio, diria que seus quatro anos de seminário seriam equivalentes a seis meses das leituras dele. Portanto, seja prudente quando quiser questionar o amor e a dedicação de uma pessoa ao estudo das Santas Letras. Não seja apressado com seus reducionismos injustos e incompassivos. Observe sua teologia meu querido. Veja: ela é tão rígida que não permite sequer uma análise de casos. É sentença sem julgamento. Sinceramente meu amado, eu desconfio de que a fonte de tanta firmeza seja mais o medo da perda de controle do que o que costuma apregoar. Não tenha medo meu amado. Você nunca esteve no controle. Nosso Deus exerce uma liberdade soberana.
            Fobiano calou-se.
            Uma cena chamou a atenção de Fobiano: um senhor maduro, muito conhecido na cidade, ao ouvir a multidão em festa (pois vários possessos eram libertos dos demônios), guiado (pois era cego), aproximou-se do caixão, tocou-o com um lenço e voltou para seus olhos, que foram imediatamente abertos.
De repente, o chão novamente se abriu e Fobiano se viu em um outro lugar: um barco no mar revolto.
– Meu Deus que loucura é essa? O que está acontecendo comigo? – Fobiano gritava e chorava.
– Calma jovem, nada vai nos acontecer de mal – disse uma voz firme e feminina.
– Desculpe senhora, mas não é bem o que parece. Olhe à sua volta.
– Sei o que está vendo, mas estou certa de que Deus nos dará livramento.
– Como a senhora tem tanta certeza? Por que não pensar que Deus está nos punindo?
– Deus me revelou e prometeu em visão.
– E eu ainda pergunto. Sonhos, visões, sonhos....
– Desculpe, mas qual o nome da senhora?
– Meu nome é M…
Novamente o chão se abriu. Fobiano foi novamente tragado. Isso aconteceu por várias vezes. Ele testemunhou muitos milagres junto com o velho desconhecido: curas, exorcismos, curas que levaram à conversão e até ressurreições.
– Psiu! Ei! Fabio! Acorda! A aula acabou cara!
– Você me chamou de quê? Fobiano?
– Fábio! Não é esse seu nome?
– Sim, claro!…é?
– Você está bem cara? Perdeu toda a aula.
– Aula?
– É, realmente você não está nada bem!
– Ei, – de repente Fábio levantou-se assustado e gritando – quem é aquele velho estampado no quadro? Eu o conheço. Eu falei com ele hoje. É o sonhador! É o homem que me mostrou vários milagres.
– Calma Fábio, isso é impossível. Aquela figura ali é de Agostinho de Hipona. Esse foi o assunto da aula de hoje. Calma, foi só um sonho.
            Fábio sentou, respirou fundo e sussurrou:
– Acho que não. Acho que foi bem mais do que isso. Foi bem mais que o sonho de um sonho. Foi bem mais...Foi doxológico!
Fundamentação Histórica:

Confissões, Livro III, 11.19.
Confissões, Livro III, 12.21.
Confissões, Livro V, 6.10
Confissões, Livro V, 9.17.
Confissões, Livro VI, 1.1.
Confissões, Livro VI, 13.23.
Confissões, Livro IX, 7.16
Cidade de Deus Livro XXII, capítulo VIII.

O supremo e os supremos

Em algum apartamento de luxo no condomínio Cuba Brasileira, numa festa regada a champanhe…
Blim blom!
– Quem é o senhor?
– Queria falar com o senhor Supremo, por favor.
– Posso saber o que o senhor quer com ele? O senhor STF anda muito ocupado! Desconversou João Paulo, o mordomo.
– Diga a ele que é o senhor Embargos Infringentes.
De repente uma voz cavernosa grita de dentro do apartamento:
– Pode deixar! Ele é dos nossos!
– Obrigado Luiz – respondeu com educação Embargos Infringentes enquanto adentrava o apartamento.
– De nada, Emb...!
…bargos Infringentes – completou o visitante.
– Desculpe, mas seu nome é muito “compricado”. Tenho um “probreminha” com a língua portuguesa. Prefiro falar o “cubanês”.
– Não seria castelhano senhor? Perguntou cuidadoso e submisso Embargos Infringentes.
– Acho que é! Mas, vamos, sente! Pegue uma taça! Aqui é assim, vivemos comemorando. São mais de 12 anos de festa.
– Obrigado, mas o STF está por aí?
– Não, só tá o chefe dele.
Dirceu está aí? Porque não disse logo? Ora, todos sabem que falando com o senhor e com ele está tudo resolvido, não é mesmo?
– Diga meu salvador! Gritou Dirceu adentrando a sala com braços abertos.
            Depois de um longo abraço, Embargos Infringentes retomou a palavra:
– Não quero delongar. Vou ser direto: Essa semana fui procurado pessoalmente pelos Supremos.
– Quem?
– Os Supremos da Marvel: Homem de Ferro, Thor, Hulk, Capitão America...
– Ah! Sei! Os heróis do Tio Sam!
– Eles estão indignados com a minha aparição e exigem que o STF mude o prenome. Sabe como é, né? Depois do julgamento do senhor, do não julgamento do Luiz e da minha chegada, ser “supremo” não quer dizer muito aqui no Brasil. A Marvel entende que isso pode ter efeito direto na bilheteria do próximo filme. Não podemos esquecer que nas próximas eleições precisaremos de todos os super-heróis. Portanto, não vamos contrariá-los.
– Sei! Mas, eles sugeriram algum nome?
Pifídio, Chinfrimildo, Indecisomar, Dividildo,
– Pelas barbas de Fidel, quem sugeriu esses nomes? Interrompeu Dirceu.
– Foi o Homem de Ferro. Ele é bem excêntrico.
– E o cara verde? O Hulk? Não sugeriu nada?
– Ele não estava bem. Parece que o time dele está na segunda divisão...
            Luiz interrompeu gritando com braços erguidos e empunhando duas garrafas de champanhe já vazias:
– É corintia!. É campeão mundial!
– Não seria “Corinthians” senhor Luiz? Respondeu Embargos Infringentes, como sempre, com muita educação e em tom polido.
– Acho que Indecisomar é um bom nome. Gritou Dirceu empolgado. – Poderíamos criar uma logomarca imitando o sinal de interrogação. Acho que vai ficar bonito.
– Eu prefiro Pifídio. Interrompeu Luiz. – Realiza comigo Dirceu: Posso não saber português direito, mas sei que Pifídio começa com “P”. Ao invés de ITF, teríamos PTF. Ou melhor, PTf.
– Boa chefe! Quer dizer, boa companheiro! É isso! Vai ficar Pifídio!
            Luiz completou:
– Agora, tem uma condição: só mudaremos o nome se os Supremos ficarem calados. A ideia é mostrar que essa mudança foi iniciativa nossa – foi unilateral. Se eles querem ser considerados “os supremos”, nós também queremos.
– Acho que não teremos problemas com isso senhor. Tranquilizou Embargos Infringentes.
– Só uma dúvida – disse LuizPifídio vem de quê mesmo?
– Pífio, senhor!
– Ah! Por isso que prefiro a língua “cubaniana”.
            Na saída, o mordomo abriu a porta para Embargos Infringentes que passou lentamente e com a cabeça levemente caída, pois buscava na mente uma lembrança. Então disse:
– Lembrei!
– Lembrou o quê senhor? Perguntou curioso o mordomo.
– Desculpa, mas como é o seu nome mesmo?
João Paulo, senhor.
– Acho que você terá que mudar o nome também!
– Por que senhor?
– Essa semana nosso escritório recebeu uma carta do Vaticano. Você está desmoralizando um candidato a santo. E de santo, você e seus companheiros não tem nada. Mas não se preocupa. É para salvar pessoas como você que eu existo.

Dizendo "não" para a igreja local

A estrada asfaltada já havia findado há um bom tempo. A vegetação densa abraçava o carro em uma antiga estrada de terra. Vez por outra podia se ver testemunhos de uma civilização antiga e inexistente: vagões e estações de trem tomadas pela ferrugem; fontes vestidas de ramagem, cercas incompletas, casas com janelas tombadas...
– Que cenário macabro! Disse Blogueiro com cenho enrugado.
– Você ainda não viu nada. Disse o Motorista.
Duas horas depois, os passageiros perceberam estar adentrando no que um dia havia sido a rua principal de uma antiga cidade. Casas coloniais tomadas pela vegetação; janelas levadas pelo vento assoviavam denunciando a ferrugem e o abandono; as calçadas rachadas revelavam que há muito tempo tinham perdido a luta para a erva-daninha e as carcaças de animais davam suas boas-vindas com sorrisos bizarros.
– Acho que há mais vida em um cemitério do que aqui. Sussurrou de canto Comunhão Virtual.
– Pensar que pessoas viviam aqui aperta meu coração. Completou o Pastor Melquisedeque.
O Pastor Incompetência exclamou baixinho como se falasse consigo mesmo:
– Esse lugar não me é completamente estranho!
– Como assim? Você já esteve aqui Incompetência? Perguntou Instituição Paraeclesiástica.
– Deve ser o impacto da desolação. Só isso. Além disso, estamos cansados e famintos. Explicou indiferente a jovem Igreja Ex Nihilo.
O carro finalmente parou. Instintivamente todos dirigiram seus olhares para o mesmo lugar. Sem que fossem convidados, todos se dirigiram à frente do que havia restado de uma suntuosa construção. O reboco era escasso, boa parte do teto já não existia, somente metade da grande porta ogivada ainda estava de pé. O que sobrou de uma inscrição recepcionou os visitantes tardios: “EU SOU…”.
            Dentro das ruínas suas mentes eram uma interrogação só. Tudo era estranho: os móveis, as inscrições e a própria configuração do prédio não faziam qualquer sentido para alguns.
Blogueiro adiantou o passo em relação aos demais se dirigindo à parede a sua frente rumo a uma grande cruz. Porém, antes de chegar à cruz, ajoelhou-se diante do que parecia ser uma grande caixa de madeira diante da cruz (agora tombada). Passou a mão a fim de retirar a poeira e poder comtemplar melhor seus vários entalhes. No centro da grande caixa, um livro aberto em alto relevo. Tudo em madeira maciça. Espalmou os entalhes com admiração. Perguntava a si mesmo: “o que será esse estranho móvel?”. “Por sua posição de proeminência, junto com a cruz, ele parece sintetizar e explicar a existência de todo esse prédio”, “tudo gira em torno dele e da cruz”.
– Púlpito! Gritou o Motorista que contemplava a todos enquanto permanecia escorado na porta de entrada. – É o nome dado pelos antigos moradores desse lugar.
– Sinceramente, não ajudou muito. Retrucou Blogueiro.
– Trata-se de um lugar muito especial. Observe! Ele pode ser visto de todos os lugares. Não duvidaria que muitos arqueólogos apressados concluiriam que estamos em um templo dedicado ao “deus Púlpito”. O Motorista falava enquanto caminhava lentamente em direção a Blogueiro. Há um passo de distância tomou Blogueiro pelos ombros e o direcionou para trás do estranho móvel. E continuou:
– Daqui, os antigos profetas anunciavam todo o conselho do Senhor. Enquanto o Motorista falava, os demais já se encontravam sentados nos bancos empoeirados.
– Observe Blogueiro. Daqui o pregador poderia olhar nos olhos das suas ovelhas e as ovelhas poderiam olhar nos seus olhos. O móvel, entre o pregador e o povo, nos lembra de que essa relação era mediada. A Palavra, sustentada pelo móvel, era o elo.
– Isso é assustador. Não gostaria de ter pessoas conhecidas me observando. É muito estranho ter pessoas que sabem quem realmente sou olhando nos meus olhos. Pior, várias pessoas ao mesmo tempo. Sinceramente, acho que não falaria metade do que já escrevi. Prefiro a indiferença da webcam e a falta de cobrança e policiamento pessoal do blog e do face.
– Sim, realmente é assustador. Mas também é abençoador. Quem vive como você (atrás de uma webcam e não diante das pessoas) não sabe o que é estar diante de um povo que o reconhece como líder exatamente pelo fato de o conhecer.
– Então, você não me considera um mestre, um líder? É isso mesmo?
– Você deveria reconhecer, pelo menos, ser no mínimo estranho, ter um mestre fora da Igreja Local falando para a Igreja Local, não acha?
– O senhor nunca esteve na Web?
– Claro. Porém, a grande rede não deveria ser um fim em si mesma caro Blogueiro. Com o tempo, contudo, a turma passou a achar que a comunidade local já não era tão importante. Pensaram que poderiam atingir mais pessoas pela grande rede. Olharam tanto para a Igreja Universal que se esqueceram da Igreja Local.
            Deu-se uma longa pausa. E o Motorista retomou a palavra em tom de lamento:
– Você disse “não” para a Igreja Local.
Tentando desconversar, Comunhão Virtual perguntou:
– Por que alguém iria querer bancos tão grandes? Aqui devem caber umas dez pessoas. O que tanta gente faria junta em um mesmo lugar ao mesmo tempo?
– Visão corporativa. Respondeu o Motorista. E continuou:
– As pessoas que se encontravam aqui entendiam que precisavam estar juntas. Suas programações, agendas e prioridades não eram forjadas pela individualidade. Eles entendiam que as bênçãos do Senhor passam pela comunidade reunida e vivida. Quando o Senhor Jesus ensinou seus discípulos a orar, começou assim: “Pai NOSSO”. Oração, mesmo que no recôndito do quarto, não pode ignorar o fato de que ela é feita por um membro de uma grande família. O pai é NOSSO. Essa verdade estava clara para o povo que se reunia aqui.
Durante todo o tempo a jovem Igreja Ex Nihilo foleava uma Bíblia esquecida em um banco. E exclamou:
– Vocês já ouviram falar de um livro chamado “Atos”? Pelo que entendi, ele assegura que as igrejas não surgem do nada. Interessante, porque, segundo esse livro, Igreja é um fenômeno histórico. Se invertermos a sequencia histórica acabaremos em Jerusalém – o começo de tudo. Que loucura! Sempre achei que tinha vindo do nada.
O motorista interrompeu:
– Na verdade jovem, nenhuma Igreja vem do nada. O que tem acontecido é uma anomalia chamada “Melquisedequismo”. Isso acontece com pessoas que acham que podem começar uma igreja a partir delas mesmas. O problema é que elas, como nenhum ser criado, não surgem no vácuo.
– Por acaso está falando de mim? Retrucou Pastor Melquisedeque.
– Também! Normalmente as igrejas geram seus pastores, diáconos, missionários bem como outras igrejas. Porém, no seu caso, Igreja Ex Nihilo, foi um pastor que te gerou. É chamado de “Melquisedequismo” porque esses pastores não tem “princípio de dias”. Ou seja, não tem relação histórica ou comunitária com outros.
– Como assim? Gritou Pastor Melquisedeque. Não vim do nada! Saiba que fui ordenado! Uma igreja um dia me aceitou como pastor!
– Sei disso. O Motorista respirou fundo e disparou:
– Mas onde estava seu respeito por essa mesma igreja quando resolveu, sem levar em consideração o que a comunhão dos santos tinha a dizer, criar sua própria igreja? Aonde foi parar seu espírito comunitário? Quanto à sua ordenação, a pergunta aqui é: “Quem disse que um grupo de pastores tem autoridade para dizer se alguém é ou não pastor?” Vou ser direto: Não há outra instituição no mundo que esteja sobre a igreja local. Em outras palavras, não há instituição que comande a Igreja Local. O aval da Igreja Local deveria ter grande valor para o povo de Deus. Observe, por exemplo, que todas as cartas do NT foram enviadas, ou primariamente ou finalmente às igrejas. Até mesmo as conhecidas “pastorais”. Quanto à sua ordenação, a autoridade pastoral decorre do aval da Igreja Local. Os pastores deveriam ser escolhidos pela Igreja Local (At. 14.23). O mesmo deveria acontecer com os diáconos. Isso é simples de entender. As qualificações dos oficiais exigem observação cotidiana ou vida comum. Você não sabe, mas no dia em que foi ordenado pela segunda vez eu estava lá e vi somente uma mão sobre sua cabeça – a sua própria. Fique sabendo que quando resolveu sair de sua igreja, sua ordenação ficou lá. Quando resolveu criar uma igreja ao redor do seu umbigo, você disse um “não” à Igreja Local.
– Se essa tal Igreja Local é quem eu estou pensando, o senhor há de convir que ela complica e entrava muito as coisas. Aliás, ela também é política demais. Disse Comunhão Virtual.
– Se você é grande e forte hoje, fique sabendo que muito da sua dieta foi à base de uma proteína chamada “desprezo à estrutura eclesiástica”. Eis um ponto chave para entender o fenômeno dos mestres e igrejas virtuais: Ministérios virtuais são menos “burocráticos”. É fácil ser mestre virtual. Na comunhão virtual não há espaço para disciplina (Mt. 18; 1Co. 5), obediência e subordinação aos pastores-guias (Hb. 13.17) e muito menos prestação de contas e compromisso. Os mestres das igrejas virtuais, por exemplo, não precisam se identificar com um grupo local, nem ser reconhecidos oficialmente por ele. Basta postar. Na igreja virtual você é quem quer ser. A “igreja virtual” é na verdade a “Igreja da mãe Joana”. Cabe tudo nela. Além disso, o que você chama de complicação, chamo de processo necessário. O que você chama de política, chamo de sabedoria no lidar com os outros.
– Só falta o senhor falar que auditoria é bíblica?
– Bem, não queria entrar nesse mérito, mas já que tocou no assunto, vamos lá! Em 2 Coríntios 8 Tito recebe as ofertas em Corinto, mas observe, ele vem com recomendação. Nos versos 18-19 Paulo usa a primeira pessoa do plural para mostrar que ele não tinha sido enviado somente por Paulo. Paulo faz questão de declarar que Tito era reconhecido pelas igrejas e passou por eleição. Essa eleição tinha claramente um caráter de auditoria. Observe os versos 20-21: “evitando, assim, que alguém nos acuse em face desta generosa dádiva administrada por nós; pois o que nos preocupa é procedermos honestamente, não só perante o Senhor, como também diante dos homens”. Burocrático? Político? Diria prudente; diria respeitoso; diria comunitário.
– O clima está pesado! Acho melhor pararmos. Disse em tom conciliador o Senhor Mega Igreja. Logo que findou sua fala, sem qualquer prelúdio, a chuva chegou forte. Todos se deslocaram para o único lugar que ainda permanecia parte do telhado. Durante muito tempo só se ouvia o som das gotas nos bancos.
A chuva lavava o prédio em ruínas revelando a beleza ainda existente de alguns vitrôs, quadros, parte do piso e as colunas. A despeito de não ser mais o mesmo o lugar, a antiga edificação ainda falava muito. O prédio conseguia sintetizar reverência e aconchego; conforto e respeito.
O Senhor Mega Igreja encontrou, no que parecia ser um quadro de avisos, uma lista de nomes sob o título “excomunhão”. Depois de um tempo para a digestão das duras e estranhas informações, gritou:
– Conheço essas pessoas! Elas são da minha igreja.
O Motorista olhando nos olhos do Senhor Mega Igreja em tom ameno disse:
– Lembro-me do seu começo. Não havia uma sentença sequer em todo seu discurso que o verbo “crescer” e seus cognatos não estivessem presentes e em destaque. Tudo era avaliado pela régua do crescimento. Culto bom era culto cheio. Nos cultos, bancos vazios chamavam mais a sua atenção do que as palavras edificantes dos hinos.
Motorista meneou a cabeça enquanto olhava para cima. Respirou fundo. E em lamento continuou:
– Conheço pessoas como o senhor de longe. São tão óbvias. Em obediência ao “deus crescimento” começam a questionar e a evitar a disciplina bem como o conceito bíblico de membresia. A igreja cresce, mas como nunca estão satisfeitos, o próximo passo é diluir o discurso e fadigar suas mentes com estratégias que só revelam a descrença no poder do Evangelho puro e simples. Tenho certeza de que se fizesse uma tomografia em sua cabeça só veríamos números.
O Senhor Mega Igreja tentou interromper:
– Mas...
– Ainda não terminei. E em tom irônico o Motorista continuou:
– Suas programações bem boladas e o bom serviço oferecido por sua igreja chamaram a atenção dos muitos consumidores que habituam transitar entre as igrejas. Foi aí que começou a receber pessoas de outras igrejas, desrespeitando e ignorando a decisão da Igreja Local.
            Motorista respirou fundo, com olhos semicerrados e rangendo os dentes e em tom estoico, disse:
– O senhor recebeu pessoas que tinham sido entregues a Satanás por uma comunidade de santos. Quando fez isso, disse não para a Igreja Local.
            Voltando ao espírito irônico disse:
– Ah, mais duas palavrinhas para o senhor. Primeira: essas pessoas citadas na lista não são da sua igreja. O senhor confundiu os nomes. Ora, o que poderíamos esperar do senhor, não é mesmo? Não é muito bom com nomes. Segunda: nos próximos meses sua igreja terá mais de quinhentos acentos vazios. É isso mesmo. O senhor será chamado de Senhor Igrejinha. A explicação para tamanho êxodo é simples: seus “consumidores” encontrarão melhores serviços para o exercício da religiosidade vazia deles.
– Quero ir embora! Disse firme Denominacionalismo. Não tenho razão nenhuma de estar aqui. Toda essa conversa é contraproducente e cheia de imbecilidades.
Em um tom mais forte o Motorista retrucou:
– Fique sabendo que tenho uma palavra para o senhor também.
– Fique sabendo que não tenho que ouvir o senhor.
– É verdade, esqueci que o senhor só escuta os membros da sua denominação.
– Não é bem assim. Mas reconheço minha liberdade.
– Liberdade? Não é o senhor que vive subscrevendo decisões que somente a Igreja Local pode tomar? Quantas vezes o senhor e a senhora Instituição Paraeclesiástica invadiram a liberdade da Igreja Local tomando decisões que cabiam somente a ela? É estranho o senhor vir com essa história de “liberdade”, não acha?
– Realmente não me conhece. Em nosso grupo apenas sugerimos, nunca exigimos.
Motorista abriu um sorriso numa gargalhada condenatória.
– Sugestão? Sugestão? O senhor é mesmo uma grande piada. Ai dos que não seguem as suas “SUGESTÕES”. Conheci muitos deles. Aliás, eles moram em um bairro aqui perto chamado Ostracismo, também conhecido como Leprosário.
– Não me venha dizer que eu disse “não” para a tal da Igreja Local também!? Desconversou Denominacionalismo com um sorriso irônico.
– Não é o senhor quem usa seus distintivos denominacionais como “fundamento” para se relacionar com os outros? Não é o senhor que só se junta com quem batiza ou é batizado do seu jeito, toca as mesmas músicas, veste-se da mesma forma e tem o mesmo nome?
– Tudo que faço é visando o meu grupo. As coisas não podem ser do nosso jeito sempre. Estar em um grupo envolve sacrifício. Sim, é verdade que meu grupo diz “não” para outras igrejas, mas no que isso afeta a Igreja de Jesus Cristo ou a mensagem do Evangelho?
Com um sorriso carregado de sátira, Motorista respondeu:
– Que virtuosa a sua preocupação com o Evangelho, com a catolicidade da Igreja de Jesus Cristo; sem falar no seu espírito sacrificial.
            Saindo da sátira, Motorista foi duro e firme:
– Quem não te conhece que te compre. Seu discurso parece ser lindo, mas a inhaca da sua covardia travestida de prudência pode-se sentir de longe. Os benefícios que o grupo traz a VOCÊ, repito, a VOCÊ... te cegaram. Hoje, questionar o grupo não faz o menor sentido para VOCÊ – seria como atirar no próprio pé. Conheci muitos como o senhor na Alemanha nazista. Comodismo é o nome do deus que você adora; zona do conforto é o nome da sua filosofia de vida.
            Extremamente irritado, o senhor Denominacionalismo deu as costas para o Motorista rumo à porta de central. Com ironia, o Motorista continuou:
– Como sempre se separando.
– Separação é bíblica. Retrucou ainda rumo à porta central.
– Separar-se de pessoas que pregam o Evangelho genuíno? O problema é para quem o senhor está dizendo “não”. Está dizendo “não” para irmãos que fazem parte da Igreja de Cristo. Seu maior problema não é quando diz “sim” para a comunhão com alguém, mas quando diz “não” à comunhão e à cooperação com outros. O senhor se separa de quem a Bíblia nos comanda se ajuntar. Sim, o senhor disse um grande “não” para a Igreja Local.
            A discussão foi quebrada por um grito:
– Lembrei! Bradou o Pastor Incompetência.
– Finalmente lembrou! Disse o Motorista.
– Não lembra Denominacionalismo? Gritou Pastor Incompetência no que Denominacionalismo parou diante da porta central. Não lembra que nosso grupo me colocou aqui? Eu fui pastor aqui nesse lugar.
Denominacionalismo voltou olhar para o interior do prédio pensativo. Motorista cheio de ironia gritou na outra extremidade do prédio:
– Mais um “não” para a Igreja Local senhor Denominacionalismo?! O senhor parece não ter jeito mesmo.
– Não! O senhor é que não tem jeito. Como pode me acusar de dizer não para essa tal de Igreja Local? Como disse “não” indicando um pastor?
– Ora meu caro. O Pastor Incompetência está no seu grupo pela mesma razão que o senhor – ambos são filhos da senhora Conveniência. Acompanhe meu raciocínio: nos últimos dez anos ele mudou de igreja mais de cinco vezes. Pessoas inconstantes e incompetentes como ele precisam de um grupo que lhe dê o respaldo que ele mesmo não tem, nem pode ter. Agora, eu te pergunto: “Por que dar respaldo a um cara que não tem a mínima condição de pastorear?” Não precisa responder; já sei a resposta: é o grupo, não é? Por onde passa, esse homem vai ferindo a Igreja Local. O fato é que em suas indicações, a Igreja Local nunca foi sequer considerada em seu coração. Todas foram baseadas em puro corporativismo. “Um favor exige outro” é uma das suas filosofias. A coisa funciona mais ou mesmo assim: Quem tem o poder de indicar ganha moral com o indicado, que por sua vez, precisa da indicação por ser incompetente. O senhor, por sua vez, torna-se cada vez mais influente a cada indicação enquanto alimenta a incompetência. O fato é que o senhor gerencia uma grande rede de interesses próprios onde o Evangelho só consegue fazer figuração. O fato é que em nome do “amor ao grupo” (na verdade amor a si mesmo) você diz “não” para a Igreja Local.
– Afinal de contas, quem é o senhor? Qual seu nome? Por que estamos aqui? Disse Pastor Incompetência.
Revelação é meu nome. Vocês estão aqui para saber que cada um tem participação na morte dessa igreja local. Desrespeitando suas decisões, ignorando a vida em comunidade, limitando e ignorando sua liberdade e rejeitando-a como membro do corpo de Cristo, vocês a mataram.
As palavras de Revelação emudeceram e paralisaram a todos. Mesmo vendo Revelação tomar o carro e sair, ninguém reagiu. Já há certa distância, Revelação ouviu alguém gritar:
– Mas afinal, por que a cidade acabou?
Revelação brecou o carro bruscamente, voltou seu rosto para todos que estavam diante das ruínas e disse:
– O sal acabou!

            Retomando o caminho pode-se ver em meio à poeira produzida pela arrancada a inscrição atrás do carro: Eu creio…a Igreja Católica, a comunhão dos santos…

O amor seja com hipocrisia

Na terça feira da última semana do Seu ministério terreno, o Senhor Jesus proferiu uma de Suas mais duras mensagens contra os líderes religiosos dos Seus dias. Por sete vezes ele se dirigiu ao Seu público como “hipócritas”. As sete repetições do vocativo certamente não revelam uma possível falta de criatividade do mestre de Nazaré; antes, expõe nitidamente Sua profunda indignação ante ao quadro religioso que se impunha a Ele na festa mais prestigiada dos judeus – a páscoa.

O recurso da repetição torna indesculpável tanto o interprete mais descuidado como o mais profundo conhecedor do grego do primeiro século. Todos os que leem Mateus 23 concluirão igualmente: “Não há dúvidas; Jesus odeia a hipocrisia”.

Estou certo de que a grande maioria das pessoas (incluindo os hipócritas, claro), numa primeira leitura reagiria positivamente à condenação à hipocrisia. Se Jesus se referiu aos líderes religiosos como hipócritas por sete vezes; hoje, muitos, em muito, tem superado Suas sete repetições. “Hipócrita” é uma daquelas palavras sofridas e surradas pelo uso. Nesse mesmo grupo encontramos outras igualmente sofridas como “amor”, “preconceito”, “opressão”...

Entretanto, entre o uso da Segunda pessoa da Trindade e o feito em nossos dias há um fosso abissal. Não me refiro somente ao tempo (dois mil anos), mas à semântica também. O significado mudou. Na boca de Cristo, a condenação era contra aqueles que tinham uma preocupação demasiada com as aparências. Porém, diferente do uso atual, a questão não era tanto que elas não revelaram tudo o que pensavam ou eram, mas porque simulavam exatamente o que não eram. Ou seja, em Jesus, o hipócrita mostra o que não é. Hoje, ser hipócrita é não mostrar o que é.

Atualmente a acusação de hipocrisia é usada contra toda forma de moral. “Hipócrita” tem tornado-se sinônimo de “falso moralista”. Por falso moralista entenda-se qualquer pessoa que, por ser humana e falha (ou seja, todos), não tem o direito criticar qualquer ato como errado ou repulsivo exatamente porque seus erros a impedem de tal crítica. Assim, a acusação moderna de hipocrisia (ou falso moralismo) passa a ser um “recurso virtuoso” para se defender de qualquer tipo de condenação moral. A resposta às críticas é sempre: “quem é você para me julgar seu hipócrita?”. Em outras palavras, na “nova hipocrisia” não se pode julgar nada. Só se pode julgar o julgamento.

Vou exemplificar: É comum os defensores das práticas homossexuais acusarem todos aqueles que se opõem de hipócritas. Há artigos que defendem que alguns que espancam gays são gays descarregando a raiva contra sua própria homossexualidade. Bem, eu diria que tais espancadores tão são indignos do convívio em sociedade quanto qualquer outra pessoa que usa da violência, com qualquer ser humano se não para a defesa ou heroísmo. Mas, na lógica de muitos, eles são hipócritas porque não estão revelando o que realmente são.

O documentário OUTRAGE, por exemplo, defende que muitos dos opositores aos direitos dos homossexuais são na verdade homossexuais. A própria terminologia “homofobia” pressupõe isso. A pergunta aqui é: Alguém com desejos homossexuais não pode condenar o homossexualismo? Alguém que tem o desejo homossexual o terá sempre? Alguém que tem desejos errados deve se orgulhar disso? O desejo sexual por crianças impede o autor do desejo de condenar a pedofilia? Alguém que tem o desejo de adulterar não pode condenar o adultério? Ora, por que penso em ou desejo uma coisa quer dizer necessariamente que gosto e devo fazer apologia a ela? Por que fiz algo de errado isso me impede de ver isso como erro? Que loucura!

Seguindo a lógica da “nova hipocrisia”, muitos adolescentes, de posse da “ficha corrida” de seus pais, deveriam apontar o dedo em riste acusando seus progenitores de hipocrisia também. “Quem é o senhor para me julgar?”, “Segundo consta, o senhor foi expulso da sala no sexto ano”, diz o adolescente. E ainda: isso faz do cara que roubou um chiclete quando tinha dez anos se calar (não criticar ou julgar) quando assiste a notícia do assalto ao Banco Central. Ele imagina a dona do estabelecimento adentrando a sala de sua residência e o chamando de hipócrita e falso moralista.

Imagine o julgamento de um estuprador. O juiz lê a sentença de condenação e logo em seguida o advogado de defesa o repreende: “Seu hipócrita! Você nunca desejou a mulher do próximo?! A diferença entre você e este homem é que ele colocou seus desejos em prática. Hipócrita! Hipócrita! Hipócrita!” O policial ao lado, por sua vez, interrompe o advogado: “Hipócrita! O que o juiz está fazendo é o mesmo que o senhor fez com sua esposa expulsando-a de casa porque ela o traiu. Ela só estava colocando seus desejos em prática, nobre advogado. Ela não estava sendo hipócrita como o senhor”.

Bem, vamos parar por aqui, caso contrário nossa sequencia de acusações se prolongaria até findarmos com um coral formado por toda humanidade gritando em uníssono: Hipócrita! Hipócrita! Hipócrita!

Dessa forma, o cristão sempre será considerado um hipócrita, pois muitas vezes condena o que antes já cometeu. O Salmo 51, por exemplo, nos ensina a sermos hipócritas. Para quem não lembra, temos a confissão de um adúltero e assassino. Depois de confessar o pecado a Deus, Davi assegura que ensinará aos transgressores os caminhos do Senhor. Entre o pecado e o ensino contra o mesmo pecado, temos o arrependimento – a mudança e o perdão garantido. Ou seja, aquele que condena já não é o mesmo que pecou. Interessante o que temos nesse grandioso salmo: o que peca ensina a não pecar. Curioso, pois é comum ouvir: “Quem é você para me dizer que isso não pode?”, “Sei o que você fez?”. Em seguida temos a virtuosa acusação: “Seu hipócrita”. Assim, segundo o conceito atual, Davi não é um homem segundo o coração de Deus, mas um grande hipócrita.

Chegamos a um ponto interessante de nossa análise. Observe que a impossibilidade de julgamento gerada pela “nova hipocrisia” está diretamente relacionada à ausência do perdão genuíno. Arrependimento e perdão são as pedras de tropeço do Evangelho de Cristo no discurso da “nova hipocrisia”. Segundo as Escrituras, o perdão e o arrependimento nos autorizam a julgar (não condenar) e/ou a reconhecer o erro do outro. Numa cultura que rejeita a cruz, não há autorização para acusações.

Tanto em Jesus quanto no uso atual, “hipocrisia” é uma questão de coração. Quando Jesus acusou os líderes de hipocrisia, Ele estava assegurando que eles eram externamente o oposto do que era internamente. O mesmo acontece quando alguém hoje nos chama de “hipócrita”. Ele está falando partindo do pressuposto que conhece nosso coração.

Bem, creio que podemos, sim, em algum nível, conhecer as intenções dos corações de outras pessoas. Posso dizer que conheço tão bem algumas das minhas ovelhas que sei suas reais intenções. O mesmo acontece com meus filhos, minha esposa e alguns alunos. Por outro lado, podemos ser ignorantes tanto das intenções dos outros quanto das nossas próprias. E é exatamente quando julgamos as intenções de forma errada que revelamos nosso próprio coração. É simples, nem tudo que você deseja e pensa representa exatamente o outro.

Vamos ilustrar com pessoas ciumentas. O ciúme pode ter muitas razões. A incredulidade e idolatria, por exemplo, explicam muitas manifestações de ciúme. O que o ciumento não percebe é que muitas vezes seu ciúme é uma condenação dos seus próprios pensamentos. O cônjuge que diz em tom de acusação: “Vi como você tratou fulano(a)” está dizendo que quando trata uma pessoa da mesma forma tem intenções pecaminosas. Contudo, o mesmo não necessariamente é certo sobre o cônjuge acusado. Quando um filho da “nova hipocrisia” aponta o dedo, muitas vezes é injusto e só está revelando seus próprios desejos.

O fato é que os modernos condenadores da hipocrisia são igualmente hipócritas. Estou certo de que eles não dizem tudo o que pensam. Nenhum deles suportaria as palavras despidas da “hipocrisia” tão odiada e julgada. Não suportariam a verdade de suas feiuras encobertas pela toxina botulínica, do fracasso familiar, do medo da morte, da infelicidade encoberta pelas compras e pelo entorpecimento do entretenimento. Estou certo de que os atuais condenadores da hipocrisia tapam a boca no velório de amigos e parentes. Mesmo sabendo que o morto era o pior dos maridos, ainda encontram palavras como “Nunca deixou faltar nada em casa”. Que hipocrisia!

Uma das grandes acusações feitas às igrejas é que elas estão cheias de hipócritas. Bem, em primeiro lugar, sim, é verdade que é possível, para ser mais exato, é muito provável termos muitos hipócritas nas igrejas. Creio que o ambiente religioso é bem propício para isso. Por outro lado, se a acusação está seguindo a “cartilha da moderna hipocrisia”, diria que todos devem ser hipócritas na igreja. Ora, não devo tratar meus filhos e esposa na igreja como os trato em casa. É lógico. Isso não é falsidade, é simplesmente reconhecimento de contextos distintos. Será que quando ensino meu filho de 10 anos a não falar tudo o que pensa de alguém estou lhe ensinando a hipocrisia? Não seria isso prudência?

Pensei nas palavras do apóstolo Paulo em 1 Coríntios 9.20-22: Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. Enquanto o mundo diria: “Que grande hipócrita!” Nós dizemos: “Que grande amor pelo Evangelho”.

Uma das facetas da “nova hipocrisia” é que ela fomenta a cultura do cara-de-pau. A expressão “católico não praticante” é bom exemplo disso. Existe algo mais cara-de-pau? Nada mais não-hipócrita, não é mesmo!? Ora, isso não é o mesmo que um mecânico que não consegue trocar um pneu se denominar “mecânico”? Um vereador não eleito denominar-se “vereador”? O dono de uma empresa falida se denominar “empresário”? Um professor analfabeto…? Um locutor mudo…? ad infinitum. Na “nova hipocrisia” o cara pode se autodenominar “católico não praticante”, e ainda dizer: “pelo menos não estou sendo hipócrita”. Que cara-de-pau! Creio que não vai demorar muito para termos a “versão gospel” da expressão: crente não praticante.

É interessante notar que a cultura das rédeas morais soltas que aponta o indicador para o hipócrita, aponta os outros três dedos contra a falsidade da autoestima. A boca que acusa o cristianismo de hipocrisia, por não entender o perdão da cruz, é a mesma que prega que devemos acreditar em nós mesmos. Nada mais realmente hipócrita do que a mensagem do “eu posso”, “eu vou conseguir” tão constante nos programas “imbecilizadores” da TV. Não é estranho que a mesma cultura que não permite que mintamos para os outros sobre quem realmente somos permite e incentiva a mentira para nós mesmos? O fato é que a mentira da autoestima não resiste muito tempo diante da verdade da incapacidade, da feiura, da desigualdade, da tristeza, da violência – a máscara não resiste. Então, só fica a depressão.

Sinceramente, devemos, como cristãos, tomar a acusação de hipocrisia como um elogio. Se hipócrita é aquele que não fala tudo o que pensa e que condena o que pode ou já realizou, certamente sou um grande hipócrita. Diria mais, lutarei com muita oração para continuar sendo o maior hipócrita de todos, pois o contrário de hipocrisia é imprudência. As pessoas não precisam nem suportariam tudo o que se passa pela mente de um pecador, dos quais eu o principal.

Olha só o que o tempo faz! Antigamente os efeminados eram denominados de “mulherengos”, hoje o significado é exatamente o contrário. A dinâmica da língua somada ao tempo decorrido me leva a afirmar: “Ame aos seus irmãos com hipocrisia”. Seja prudente em suas palavras e, depois de analisar seus próprios pecados (sem hipocrisia, ou seja, arrependido diante de Deus), ajude seu próximo com os dele, os revelando com amor.

Perfil

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Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.