Ordenação e Congregacionalismo

Esse ano vou fazer seis anos que pastoreio a 1ª Igreja Batista Regular de Aquiraz (Ceará). Nesse período de pastorado nasceu uma congregação. Essa, por sua vez, tem prosperado muito. Não demorou a enviarmos um irmão da “igreja mãe” para auxiliar o missionário que havia iniciado o trabalho. Era nossa forma de apoiar a obra. Esse irmão, que sempre foi ativo em nossa igreja, assumiu pregações, estudos, aconselhamentos, visitações etc. Em outras palavras, assumiu “atividades pastorais”. Logo, os membros da congregação o denominaram “pastor”. Nada mais natural e esperado. Porém, isso não me agradava, pois, apesar de entender que todos os cristãos possuem dons, e que o do irmão em questão era o pastorado, alguns dons precisam de reconhecimento oficial. E certamente esse seria o caso do pastor (cf. At. 14.23).

Foi então que o tema ordenação me veio à mente. Eu não havia passado por aquilo que muitos em meu grupo chamam de ordenação. A primeira questão a surgir foi: “Como vou ordenar o pastor da congregação, se eu, o pastor da igreja mãe, não sou ordenado?”. Outras questões surgiram: “Seria eu um pastor de segunda categoria?”; “Existem pastores de duas categorias – os ordenados e os não?”; “Existe algum pastor não ordenado?” O artigo que segue visa responder essas questões.

Comecemos com a definição. Quero apresentar duas. A primeira é a essência do que encontramos nos compêndios de teologia, enquanto a segunda é resultado da minha observação da prática.

Definição 1: Ato solene pelo qual a igreja local reconhece pública e formalmente o seu pastor como uma pessoa chamada e apta para desempenhar as funções ministeriais (Jaime Augusto Lima – itálico nosso).

Agora vamos à definição partindo da prática Batista. Antes de criar a definição que segue, procurei a opinião de vários amigos de ministério.

Definição 2: Ordenação é uma cerimônia em que um candidato ao pastorado, embora paradoxalmente possa já ter sido reconhecido por sua igreja local como pastor, é examinado doutrinariamente em algumas horas e recebe a chancela ou a reprovação de vários pastores e/ou membros de um concílio que não necessariamente fazem parte da igreja local. Denominaremos esse conceito de ordenação, “Ordenação Conciliar” (doravante, OC).

Nesse ponto quero alistar e/ou relembrar duas marcas do sistema de governo congregacional que têm ligação direta com a questão da OC e serão essenciais para nosso julgamento da mesma. O congregacionalismo, portanto, em nosso artigo não é julgado; antes, pressuposto.

A autoridade final está com a igreja local (cf. Mateus. 18; 1 Coríntios. 5).

Toda interferência externa à igreja local não se dá de forma autoritativa e/ou final; antes, possui caráter de sugestão, aconselhamento, elucidação, informação, exortação etc. A última palavra sempre será da igreja. Aqui vale a ressalva de que a mesma pode errar caso não se enquadre na autoridade maior – a Revelação Escrita. Em outras palavras, a autoridade da igreja é derivada das Escrituras. Aqui estamos pensando na relação de autoridade pastor/igreja.
Se todo conselho, seminário, associação ou qualquer instituição tem poder somente de sugestão, a natureza validade de um documento de OC dependerá, por sua vez, da igreja local. Ou seja, em si, ela (OC) não tem valor final. Trata-se de uma sugestão.
A questão aqui é: Porque a ordenação, na maioria das vezes (conforme observei em pesquisa realizada com vários pastores), acontece depois do reconhecimento já realizado pela igreja? Porque ordenar alguém já reconhecido pela igreja? Não seria um testemunho da igreja contra ela mesma, já que ela está pedindo um conselho sobre aceitação (ou não) de um pastor já aceito por ela? E aceitação por parte de um grupo de pastores não seria um testemunho contra eles mesmos uma vez que não estão reconhecendo a autoridade final da igreja local? Ora, se após um reconhecimento oficial por parte da igreja local se faz necessário outro reconhecimento, certamente um sobrepuja o outro. Se autoridade do concílio é secundária e não final, porque acontece depois?
Alguém pode retrucar dizendo que a igreja pode errar em suas escolhas, por isso precisa dos “de fora”. Não tenha dúvidas não é preciso ter muita experiência em igreja para se concluir que ela pode errar; mas questão é: onde estará o erro e como consertá-lo? O que o concílio analisa que a igreja não pode discernir? Se um grupo de fora vê o que a igreja ainda não viu, tal realidade pode, no máximo, denunciar uma metodologia ruim da igreja local no reconhecimento do seu pastor e não implica necessariamente em uma apologia da OC.
Talvez você está pensando que nem toda OC segue a aceitação da igreja. É verdade. Em consulta a colegas de ministério, alguns têm dito que o ideal é que a ordenação venha antes do reconhecimento da igreja. No caso, a igreja deveria reconhecer (ou não) levando em conta o conselho do concílio. Concordo que essa deveria ser a ordem; contudo, discordo quanto ao fato de ser a práxi (pelo menos no meu grupo). Mas, passemos, então, mesmo que por ficção, a considerar que todas as OC precedem a aprovação da igreja.
Aqui vamos a segunda marca do governo congregacional:

A autoridade (jurisdição) pastoral é restrita a sua congregação.

O governo congregacional assegura que cabe a igreja local o reconhecimento dos seus pastores. Em outras palavras, ninguém pode se autodenominar “pastor”. Pastor é uma vocação que exige reconhecimento oficial da igreja. Nenhum pastor pode surgir no “vácuo eclesiológico”. Não há pastor sem igreja. Sua autoridade é derivada da igreja.
No processo desse reconhecimento ela pode pedir a ajuda de pastores e/ou irmãos de outras igrejas. Para mim, sem dúvidas, uma atitude louvável (Pv. 15.22). Porém, neste mundo decaído, tudo que é louvável e virtuoso não está tão distante do reprovável e pecaminoso. Poucos conseguem ver problemas com esse pedido de ajuda e/ou aconselhamento. Aqui queremos considerar os possíveis problemas implicados desse pedido.
1. A igreja local pode esquecer que a “autoridade pastoral” dos seus convidados está restrita às suas igrejas locais. Se a igreja que convoca um concílio não tiver consciência da jurisdição dos seus convidados, o que deveria ser uma ajuda de irmãos mais experimentados passa a ser a palavra final; e os “conselheiros” passam a ser considerados os “autorizadores”. A igreja, portanto, pode entregar às pessoas “de fora” (concílio) o seu trabalho devido. Nenhum grupo de pastores ou irmãos, por mais experimentados que sejam, pode assumir o lugar exclusivo da igreja local.
Coloquemos a questão em forma de pergunta: “Deveria a igreja local aceitar, ou usando as palavras do apóstolo Paulo em 1 Timóteo 5.22, “ser cúmplice” do julgamento do concílio como a “palavra final” não sujeita a questionamentos, críticas e até mesmo reprovação?” Para o NT, não. Todo conselho deve ser analisado como conselho. Ou seja, não é palavra final. Particularmente, penso que isso não acontece na prática.
2. Vejo no pedido de ajuda um problema no reconhecimento da suficiência da igreja local em cumprir suas prerrogativas. Se essa precisasse de uma interferência fora dela mesma, porque Deus não criou essa outra instituição? Além disso, as qualificações de um bispo não podem ser examinadas por pessoas que não convivem com a mesmo. Aniquilo, portanto, qualquer possibilidade de consulta da igreja a pastores e irmãos experimentados de outras igrejas? Não; não e não. Contudo, infelizmente, muitos dos consultados não reforçam a autonomia da igreja; antes, se colocam como elementos essenciais no processo de reconhecimento de um pastor – o que não é.
3. Aqui entramos em outro ponto: A OC pode servir para perpetuar um modelo capenga. Como já coloquei, no ideal do NT, pastores devem emergir da própria igreja e não “de fora” (cf. o post “A relação entre a igreja e o pastor”). E é exatamente porque a grande maioria dos pastores hoje vem “de fora” do convívio com a igreja, que a OC torna-se necessária. Traduzindo: como a igreja não conhece o candidato (e deveria conhecer para o reconhecer), ela realmente precisa do conselho dos de fora. Sua ignorância a conduz a supervalorizar o conselho do concílio.
4. A convocação de um concílio tem seus perigos e ameaças. Pensemos numa situação específica: uma igreja recusa o veredicto do concílio. Para mim, isso é o mesmo entrar numa grande enrascada junto à associação de igrejas ou a comunidade pastoral. Há, portanto, a possibilidade da OC ser um tiro no pé da igreja. Alguns diriam que a reprovação da igreja ao veredito do concílio não seria ético. A pergunta que poderia ser feita em contraposição é: não seria antiético, por parte do concílio, reprovar alguém já aceito pela igreja?

Minhas conclusões:

1. A OC não emerge do sistema de governo congregacional. A sensação que tenho é que a OC é uma síntese que os congregacionais fizeram com outros governos de igreja. O que os congregacionais devem entender, é que toda prática parte de pressupostos. E isso não é diferente com a OC. Os pressupostos do presbiterianismo, por exemplo, não somente permitem a OC como também a exige, pois nesse sistema, pastor é pastoreado por pastores (presbitério). A questão é: O congregacionalismo e suas duas bandeira citadas supra não exigem nem permite o peso “autoritativo” dado a OC. Os pressupostos que exigem um Concílio de pastores emergem de qualquer tipo de governo, menos do congregacional.

2. Reconheço a importância das relações entre as igrejas. Creio na autonomia da igreja, mas entendo que autonomia não é o mesmo que independência total. O NT deixa claro que as igrejas tinham projetos comuns (Rm. 15.26); preocupavam-se umas com as outras (At. 11.27-30; 12.25). Por outro lado, há casos em que as igrejas não deveriam intervir na vida de outras. Na disciplina, por exemplo. Uma igreja local não pode disciplinar o membro de outra igreja. Isso se dá pela própria natureza da questão. A disciplina deve ser realizada pela igreja. Não vejo como pessoas “estranhas” podem determinar se alguém é pastor ou não. A natureza das exigências para o reconhecimento de um pastor requer o respaldo da convivência que um concílio formado por pessoas de fora não pode dá. Isso não elimina a consulta de outros, mas limita o respaldo dos de fora.

3. Uma atitude louvável; melhor, esperada em um concílio é orientar a igreja no processo de convite de um pastor e não tomar seu lugar. Caso seja convidado para o reconhecimento de um pastor que já se encontra lá e já foi reconhecido (ordenado) pela igreja, o concílio deveria ajudar a igreja a entender o papel do pastor e da igreja bem como abraçar esse “noviço” na orientação de uma vida pastoral. Em outras palavras, os “de fora” devem ser instrumentos de auxílio dessa nova relação (pastor/igreja).

4. O que não se pode negar é que a OC tende a formar uma classe diferenciada dentro dos pastores. Isso pode ser observado na prática quando alguém após perguntar se você é pastor, logo em seguida, pergunta se é ordenado. Ou seja, tem o pastor e pastor ordenado. É como acontece com a formação dada pelos seminários. As pessoas perguntam: “você é pastor?” e logo em seguida: “formado aonde?”.

5. Passar por uma OC hoje, para mim, seria um retrocesso. Estaria comunicando a minha igreja, de forma indireta, que seu reconhecimento nesses últimos seis anos não tem peso para mim, nem para Deus. É como se estivesse buscando fora da igreja uma autoridade maior. Como se a dela não bastasse. O fato é que sou ordenado pela minha igreja. Logo, eu, e todos os que foram reconhecidos em suas igrejas, foram realmente ordenados. Fico a definição 1.

Eu era ordenado e não sabia.

Perfil

Minha foto
Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.