Estética divina ou opinião própria?

Quem nunca testemunhou ou até mesmo protagonizou uma discussão por questões estéticas? Enquanto as questões são somente “discutidas”, tudo tranqüilo. Mas, o fato é que quando o assunto é “estética”, geralmente as pessoas não trocam ou compartilham idéias – elas guerreiam entre si.

Muitas das discussões quanto à estética são tão ou mais acaloradas do que as discussões envolvendo ética e moral. Talvez uma das razões esteja no fato de que a grande maioria das pessoas não entende as relações entre essas duas áreas e, principalmente, suas distinções. Muitos discutem estética como se fosse ética ou moral. Ou seja, discutem questões subjetivas com se fossem objetivas.

A igualdade pressuposta (e confusa) entre a moral e estética pode ser exemplificada colocando adjetivos morais e éticos em temas estéticos. Observe: “Esse quadro renascentista está ERRADO!” ou, “Essa arquitetura é PECAMINOSA”, “A gravata do pastor é INIQUA”, “O modelo do carro do irmão João é IMPURO; ou, sendo mais positivo, “ESSA cor é SANTA”; “Esse instrumento é “de Deus”, “a estampa da roupa da irmã é VIRTUOSA”.

Para o cristão, a discussão torna-se mais acalorada, porque ele fala “em nome de Deus”. Não são poucas as vezes que, com a mesma força que se combate a fornicação (questão ética, proposicional, clara nas Escrituras), declara-se que uma determinada música (questão estética) não é santa, não é “de Deus”. A questão aqui é “Deus tem um gosto”?, ou, “Qual a estética divina?”, “Deus gosta mais de azul ou branco?”, ou “Qual o estilo musical de Deus?”, “Aonde Deus revelou Seu gosto?”; “Deus tem UM gosto musical?”, “Dois? Três….?; “Existe objetividade no gosto?”

Dentro do campo da estética, o calcanhar de Aquiles no mundo cristão (especificamente o meu, Batista tradicional, regular, conservador…) está na música. Muitos querem criar, digo, determinar um estilo “santo”, “bíblico”. Para muitos, não há espaço para subjetividade na música. Trata-se de uma questão moral somente.

Antes de continuar, preciso fazer alguns esclarecimentos: 1) meu foco aqui está na questão do gosto pessoal e não na adoração coletiva (algo mais complexo). Estou pressupondo, portanto, que a música que escuto na igreja não deve ser necessariamente a mesma e a única da minha vida privada e vice-versa. Sobre essa relação (privado e comunitário) buscarei os princípios na esfera maior (adoração em Israel, por exemplo) pois não temos nas Escrituras palavras diretas sobre a música na vida privada. Bem, não há nada que seja permitido na esfera comunitária que seja proibido na vida privada. Já o contrário é verdadeiro; 2) Minhas críticas serão contra idéias, não contra pessoas. Tomarei uma crítica feita no meu blog por um leitor específico, porém ele será tratado como uma figura representativa, não como indivíduo. Assim como sua crítica será tomada como representando muitas outras pessoas, minha resposta não será pessoal, mas visando todos que são representados pelo meu crítico.

Explico: Em uma das minhas primeiras postagens (Preservando a Santidade na Igreja, parte 2, agosto de 2008) fui criticado por colocar um link de uma banda americana. A razão, diz o comentarista e crítico: “…a música possui um ritmo (rock) que não reverencia nem glorifica a Deus, já que estimula o corpo a movimentar-se e não a mente ao louvor ao Senhor”. Para esse leitor a música “desvia a atenção de Deus”. Na crítica ele ainda fala de “moral, santidade e pureza”.

Para nosso crítico (e muitos outros), o rock (expressão de arte - estética) não reverencia a Deus, é pecaminoso, irreverente, mundano, em outras palavras, é errado – é uma questão ética, moral e, por conseguinte, prescritiva. Entretanto, essa não foi a primeira crítica que ouvi sobre a temática. Contudo, todas as vezes que vejo alguém criticar um estilo musical qualquer (só cito o rock como exemplo, não focalizarei nesse estilo musical específico, nem estou defendendo ou acusando-o), fico esperando as referências bíblicas, as partituras celestiais, ou quem sabe um mp3 com as “Dez Mais” do céu.

A pergunta aqui é: baseado em que alguém diz que Deus não gosta de um determinado estilo musical? Parece que uma das bases do nosso amigo (e de muitos outros) é que, se um estilo musical estimula o corpo, ele está automaticamente condenado. E para ele, estímulo ao corpo parece necessariamente negligenciar a mente.

Algumas considerações como resposta:

1. Há um estímulo nos Salmos ao uso do maior número de instrumentos musicais possíveis. Junta-se a isso, o silêncio de Levítico quanto aos instrumentos musicais. Levítico fala das roupas, da comida, dos dias, das festas, das regras femininas, das doenças, mas não há regras que limitem instrumentos musicais. Além disso, a Bíblia mesmo revelando a origem dos instrumentos (a dinastia cainita - mundana) não os proibiu. É costume usar a origem dos instrumentos para condenar seu uso. Esse, entretanto, não é o critério de Deus.

2. Há uma diversidade de estilos musicais no saltério hebraico. Exemplos: os lagares [8.1], morte para um filho [9.1], corça da manhã [22.1], os lírios [45.1], não destruas [57.1], os lírios do testemunho [60.1], de Jedutum [62.1]…). Hoje não sabemos ao certo que estilos musicais são esses. Mas certamente muitos não gostariam desse “cantor cristão hebreu” diante da sua diversidade de estilos musicais. O que acontece muitas vezes é que se escolhe um estilo e o sacraliza. Ou, demoniza os demais. Não é assim com Deus. Há diversidade de estilos no manual de louvor de Israel.

3. E o que dizer da ordem bíblica direta envolvendo a dança (Sl. 150.4)? Geralmente alega-se que não temos todos os dados sobre a natureza dessa dança. Mas o que não se pode negar é que há “movimento corporal” envolvido no vocábulo hebraico. Se “movimento corporal” em um contexto de “música” não é dança, podemos dar outro nome, mas ainda assim é “movimento corporal” vinculado a “música”.

4. Na crítica que agora rebato, há um pressuposto antropológico (mais grego do que bíblico) de que o estímulo corporal é a priori pecaminoso. Será que a reação corporal é necessariamente pecaminosa? Se meu corpo reage a uma expressão de arte devo reprimi-lo? Ouvir uma bela canção e sentir prazer é pecaminoso? A arte visual não é corporal? A arte gastronômica não é corporal? Chorar não é corporal? Afinal, pode-se fazer ou sentir algo sem que isso tenha vínculo direto com o corpo? Existe realmente uma música que não estimule nosso corpo? Reprimir o corpo é o mesmo que reprimir o pecado? O que é mental, que não é corporal? E as expressões corporais bíblicas vinculadas a adoração como levantar as mãos, por exemplo? E o apelo de Paulo ao uso dos membros do corpo para a santificação.

5. O fato, que muitos não querem aceitar, é que Deus entregou muitas decisões (inclusive éticas) às nossas “consciências”. Há questões em que Bíblia simplesmente não se pronuncia de forma prescritiva. O estilo musical é um exemplo claro disso. Em muitos casos, a Escritura nem incentiva, nem proíbe. Ou seja, há espaço para subjetividade na vida cristã. Essa subjetividade envolve tanto a ética como a estética. A última muito mais por ser subjetiva por natureza.

6. A justificação da arte. Preciso justificar a arte? Para que uma música seja divina ela deve ter uma referência bíblica declarada? Para que um quadro tenha um espaço na sala de um cristão ele deve representar alguma história bíblica? A arte justifica-se por si mesma. Com isso quero dizer simplesmente que não precisamos explicar com um versículo bíblico porque gosto de amarelo e não de preto. Não preciso explicar porque gosto de futebol e de casa de campo? Não preciso explicar porque prefiro surf e não handebol. Eu gosto, só isso – é subjetivo, é pessoal. Deus nos criou assim - uma obra de arte.

7. Não se está justificando todo tipo de arte. Tratar a arte como distinta de ética e moral não é afirmar que não há qualquer relação entre elas. Há sim uma relação entre a arte e a ética ou a moral. Alguns valores morais usam a arte como instrumentos de divulgação. Alguns movimentos artísticos surgiram de pressupostos mundanos. Além disso, todo artista tem uma cosmovisão que aplica e/ou impõe em sua arte. O nú "artístico" é um exemplo extremo disso. Contudo, isso não desqualifica a arte da fotografia ou da pintura. O fato de alguém pregar (arte) contra Deus não desqualifica a arte da pregação ou da oratória.

8. Sobre a acusação de mundanismo surge a pergunta: "Afinal, o que é mundano?" Para muitos, trata-se de tudo que vem do mundo. A implicações lógicas dessa definição devem levar seus adeptos ou a formação de monastérios ou, no caso da grande maioria dos evangélicos, a criação de um "gueto gospel" (e.g., camisa gospel, caderno gospel, lanchonete gospel, ótica gospel,...) . A Bíblia fala de "mundo" tanto positiva (principalmente como uma referência à criação) quanto negativamente. Negativamente "mundo" refere-se "a ordem criada (especialmente de seres humanos e assuntos humanos) em rebelião contra seu criador" (CARSON, D. A. O Comentário de João, p. 123). A questão é: existe um estilo musical mundano "por natureza"? Existe algo inerentemente mal? Rock é mundano por quê? Alguns diriam que os cantores de Rock usam drogas, são bêbados. E o que dizer da literatura? Quem são os grandes escritores? Abrimos a boca com orgulho para dizer que lemos suas obras sem qualquer problema. Aceitamos a arte da literatura, do cinema e até da arquitetura sem buscar a “ficha corrida” dos artistas. E o estilo de sua casa? Que referencial tem? Em que escola de arquitetura ela se encaixa? Que igreja tem uma arquitetura bíblica? Existe isso? Que estilo musical ou instrumento musical foi criado pela igreja de Jesus Cristo? E se foi, quais foram os critérios? E se não foi, é mundano? Para meditação: O que é mais mundano, tomar Coca-cola até não agüentar mais numa “comunhão entre irmãos” ou tomar um cálice de vinho nas refeições? Comer como glutões desesperados e incrédulos ou ouvir uma música que revela as belezas da criação de Deus? Na grande maioria das conversas que tenho com irmãos de várias igrejas, a visão de mundanismo é reduzida por uma micro ética do "não beba", "não escute rock", "não assista novela" etc. Nesse processo de "mundanizar" tudo, negamos muitas bênçãos de Deus. Deixemos que o próprio Senhor nos oriente em Sua Palavra sobre o que deve ou não ser rejeitado.

9. A proibição com cara de espiritualidade é marca dos falsos mestre. Em 1 Timóteo 4.1ss, Paulo fala de ensinos de demônios. Esse ensino era caracterizado pela proibição do que Deus havia criado para ser recebido com ações de graça. Portanto, cuidado com proibições infundadas que imputam mundanismo em práticas não proibidas diretamente pelo Senhor em Sua Palavra. O interessante aqui é que o apelo de Paulo é dirigido à criação de Deus. Em outras palavras, esse mundo não do Diabo, é de Deus. Está afetado pelo pecado, mas é de Deus e há muito nele para ser aproveitado, ou seja, digno de ação de graça. Nas palavras de Michel Horton, "...não é necessário 'santificar' a arte exigindo que ela sirva aos interesses morais e religiosos da igreja. A criação é uma esfera legítima em si mesma" (O Cristão e a Cultura, p.23 - itálico nosso).

Conclusão

Cuidado ao falar em nome de Deus, onde o mesmo não se pronuncia. Em suas discussões, preze pelo que é claro, objetivo e proposicional nas Escrituras. Ela é a nossa prioridade. Contudo, a própria Escritura apela à nossa consciência (subjetivo). Cuidado, pois, em denominar "demoníaco" ou "mundano" o que condenado em sua própria consciência. A jurisprudência da consciência não ultrapassa os limites do indivíduo. Se ela (a consciência) diz que é mundano; é mundano para você - obedeça-a.

Quanto ao estilo musical, muito da chamada música "de Deus" é, na verdade, uma projeção da formação ou do gosto pessoal. E, portanto, deve tratada como pessoal. Se alguém encontrar o estilo musical de Deus; digo, os estilos musicais, avise-me, por favor. Enquanto isso, vou seguindo minha consciência. E você, siga a sua. Nessa questão, evite o julgamento (caso você não tenha "firme convicção") e o desprezo, caso esteja convicto na Palavra (cf. Rm. 14.3, 23). Suportemo-nos uns aos outros.

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Perfil

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Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.