Serpentes falam?

Gênesis 3 nos apresenta um personagem intrigante: a serpente. Sempre me questionei quanto a sua natureza. Eis algumas questões que me incomodavam:

1) Como Satanás “tomou” ou "possuiu" o animal serpente antes do pecado entrar na terra (natureza)? O registro bíblico nos direciona a uma "ordem de importância" entre o homem e a criação. Todo sofrimento na criação é resultado do pecado do homem. Caso o animal tivesse sido "tomado", teríamos uma "inversão de valores". Ou seja, antes do homem pecar, a natureza já estaria afetada por Satanás. Contudo, seguramente, essa não é a maior dificuldade na interpretação dessa figura. Prossigamos...

2) Se foi Satanás quem tomou o animal, porque somente o animal sofre as conseqüências? E Satanás, onde fica sua punição? Se a punição à serpente é na verdade para Satanás, o texto está nos convidando a abandonar a literalidade da serpente/animal. Mas, se mantivermos a literalidade do animal, temos uma outra consideração a fazer:

3) Se a serpente aqui pertence ao reino animal, porque Cristo não pisou literalmente na cabeça de uma serpente? Colocando de outra forma: porque Ele não pisou na cabeça dessa serpente específica?

Uma proposta: Serpente não pode se referir ao animal, pois teríamos um problema quanto à ausência de punição a Satanás bem como com a natureza da aplicação dessa punição. Assim, "serpente" é mais um dos nomes para Satanás. Reconheço que essa proposta esbarra na idéia de que o texto bíblico refere-se a "serpente" como participante do reino animal. Algumas considerações poderão esclarecer a questão:

1. O texto não exige que a “serpente” pertença ao reino animal. Kaiser explica bem as sentenças “mais sagaz (“astuta”, ARC) que todos os animais selváticos” (3:1) e “…maldita és entre todos os animais domésticos e o és entre todos os animais selváticos” (v.14): “O hebraico min é uma partícula de distinção e eminência, não uma partitiva (“qualquer dos animais”); pelo contrário, é a forma comparativa (“mais do que os animais”). Nesta maldição, “a serpente” é distinguida de outras criações divinas, por exemplo, os animais, e separada para maior repreensão (KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 38).

2. A punição é direcionada a Satanás. Gn. 3:14 meramente assevera que a derrota dele era tão certa que haveria de “rastejar sobre seu ventre” (Gn. 49:17; Jó. 20:14, 16; Sl. 140:3; Is. 59:5; Mq. 7:17). Além disso, a situação desprezível e a sua abjeta humildade eram tão reais que lamberia o pó ou conforme dizemos hoje: “beijou o pó”. Ambas as frases seguem a expressão figurativa do oriente próximo antigo, representando seres humanos conquistados (cf. Sl. 72:9; Is. 49:23; Mq. 7:17). Se a serpente é literal, a punição deve acompanhar sua literalidade. Porém, os répteis não comem terra. Além disso, Deus já havia feito animais rastejantes e isso era bom (Gn. 1:25).

3. O NT não divide “Serpente” de “Satanás”, nem interpreta a Serpente como "tomada" por Satanás. O apóstolo João diz diretamente que Satanás é a antiga serpente. Ou seja, esse é mais um dos seus nomes (cf. Ap. 12:9; 20:9).

4. Não sabemos se a serpente recebeu o nome que tem por causa Satanás ou o contrário, o fato é o vocábulo traz a idéia de “astúcia” e "derrota" (rastejar). Ou seja, o animal serpente nos lembra duas verdades sobre Satanás (ou o contrário): sua astúcia e sua derrota. A sobreposição de uma em relação a outra traz grandes malefício como, por exemplo, o temor excessivo (ignorando sua derrota) ou negligência (ignorando sua astúcia). Quanto ao trato com Satanás, a derrota e a astúcia, portanto, devem ser consideradas com igual importância.

Há dois erros iguais e opostos no que diz respeito à matéria Demônios: uma é desacreditar em sua existência. A outra é acreditar e sentir um excessivo interesse neles. Os mesmos demônios ficam igualmente satisfeitos pelos dois erros e portanto, contemplam um materialista e um mágico com o mesmo prazer.

C. S. Lewis, prefácio à Cartas do Inferno

Perfil

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Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.