Cachaça na igreja


Quem já viveu ou conviveu no mundo da bebedeira, sabe muito bem que além de falar alto, boa parte dos ébrios fala muito. A despeito da variação de assuntos debatidos à mesa, podemos encontrar um conteúdo todo particular no grupo dos “inflamáveis”. Aqui queremos denominar toda a miscelânea de ditados, expressões e comportamentos particulares do mundo do álcool de “filosofia da cachaça”.

Para evitar maus entendidos, o termo “cachaça” não visa restringir a uma categoria dentro do grande mundo dos bebedores. Poderia ter escolhido qualquer outra bebida. A escolha pela cachaça revela a minha luta por uma expressão mais tupiniquim. Se vodka lembra a Rússia e o Whisky os escoceses, não se pode questionar a brasilidade da cachaça. Não que me orgulhe disso, minha escolha se deu mais por questões lingüísticas.

Resolvida a questão dos termos (algo quase inevitável nesse mundo pós-moderno) vamos à filosofia da cachaça. Comecemos por um dos grandes filósofos dessa corrente tão forte no nosso país, o famoso cantor Zeca Pagodinho. Ele personifica a filosofia muito comum entre os cachaceiros: “Faça o que digo e não faça o que faço”.

Em muitas das suas entrevistas, Zeca Pagodinho revela sua preocupação com a educação dos filhos e de outras crianças através de uma instituição criada por ele. Venhamos e convenhamos, é difícil para um sujeito que vive a beber (até na “Zeca-feira”) olhar para um filho e dizer: “Siga meu exemplo! Vá estudar! Controle-se! Seja disciplinado! Cuidado com o vocabulário!”.

Todo ser humano tem sempre um conselho a dar. Isso não é diferente para os participantes dessa corrente filosófica. Sóbrio ou não, o certo é  que sempre escutaremos um conselho dos “filósofos da cachaça”. O engano do grande garoto propaganda do álcool (como da maioria dos bebedores) é achar que a verdade pode ser apresentada de qualquer forma. Qualquer discurso verdadeiro associado com vida ou momentos de alcoolismo é desleal. Verdade exige lealdade e coragem. O que dizer de um policial bêbado? Que tal um discurso presidencial regado a cachaça?

Pensemos nas juras de amor e nas promessas feitas após algumas doses. Embora a declaração seja feita enquanto a língua se descontrola na boca acompanha de um olhar avermelhado, o bêbado crer que somente “suas palavras” (não sua vida, nem sua face distorcida ou seu descontrole etílico) devem ser consideradas.

Alguém pode rebater a ideia e dizer que muitas pessoas aceitam as palavras de um bêbado. Bem, há de se questionar a sobriedade de quem confia nas palavras “baforadas” de um ébrio. Mas isso é razão para outro artigo. Por hora, faço um esclarecimento: Não digo que toda promessa proferida por um bêbedo não se cumprirá. Só acho que confiar nelas não é sábio ou sóbrio.

E o que dizer dos que, enquanto sóbrios, são sinceros e bebem para obter coragem para proferir a verdade que “teima” em não sair? Bem, como podemos confiar em alguém que não tem coragem para expressar suas idéias? Esses podem até ter muita vontade de cumprir suas juras, mas como padecem da fraqueza e do medo dos covardes. Não podemos esperar muito deles.

Não podemos negar que muitos falam a verdade. O fato é que a verdade na boca dos bêbados não deixa de ser verdade, pois toda verdade é verdade de Deus, já dizia o reformador francês João Calvino. Se as verdades proferidas por um bêbado são tomadas como verdade, o mérito está na verdade e não em quem diz, pois “cara-de-pau” é um bom adjetivo para alguém que diz a verdade enquanto se veste de embriaguez. “Porque ‘cara de pau’”? Simples: Na hipocrisia há toda uma preocupação com as aparências. Hipócritas usam máscaras. O mesmo não pode ser dito de alguém que, por opção própria, cheira mal, anda com dificuldade e fala enquanto baba ou vomita. Bêbados não são hipócritas, são descarados.

Assim, uma das características da “filosofia da cachaça” é que seus grandes divulgadores destroem suas idéias com suas vidas. Ética e discurso são inimigos. Pensando bem, acho que isso não é exclusivo da turma do tira-gosto. Talvez com eles a questão torna-se mais gritante e absurda; “ridícula” é uma boa palavra. Mas a mesma incoerência entre discurso e vida pode ser encontrada outros ambientes. Penso até que podemos encontrar, sem muita dificuldade, “cachaceiros” na igreja também. Pessoas que tem sempre algo a dizer, mas suas vidas contradizem o seu discurso.

Vou mais longe. Acho que há mais um "elemento comum" entre os cachaceiros e alguns cristãos nominais além da incoerência entre vida e discurso. Assim como a turma do vômito, alguns membros de igreja eliminaram toda e qualquer preocupação com a imagem e/ou a reputação (o"bom nome" de Pv. 22:1). Como nos dias de Judas (cf. carta de Judas), para muitos, foi-se o tempo da hipocrisia na igreja; chegou a hora de ser "cara-de-pau". "Cachaceiro", mas de Bíblia; "libertino", mas na igreja, "bêbados", mas com bons conselhos, "errados", mas "certos".

Sejamos sóbrios! Busquemos uma vida não fingida (contra a hipócrisia, o tradicionalismo, o formalismo, o legalismo e toda teologia "sem coração" [cf. Mt. 15.8]) e, sem sacrificar o que Deus nos exige (amor, anuncio do Evangelho a todos...) em nome da própria reputação, cuidado com o bom nome (contra a negligência para com o testemunho).

Perfil

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Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.