O Amanhã


É fácil quando tudo dá certo
O dinheiro resiste
A discordância não insiste
O filho respira manso
O voto tem algum descanso

Mas, e quando o sol sair?
O que virá?
Que tal não sair?
Ou, quem sabe, disistir?

O amanhã será fácil?
A revolta não assolará?
O tempo permitirá?
O acidente não visitará?

Não sei, nem quero saber
A ignorância pode ser uma bênção
Quando o querer saber é fruto do não crer

Vou dormir
E aqui me despeço
Confio no Senhor
De coração aberto confesso

Os Outros


Junto a minha alma há muitas outras
Por isso, peço sabedoria
Pois sem ela, quão difícil seria!

Pelos outros somos animados
Pelos outros somos massacrados
Me dá outros, oh Senhor
Outros com corações transbordantes de amor

Em uns me animo
Outros, simplesmente suporto
Outros não agüento
A esses, às vezes, em pecado, da minha atenção, aborto

Perdoa-me Senhor por amar do modo mais fácil
Por amar os mais empáticos
Por amar com o amor do incrédulo
Por amar sem teu amor reto

Pastor-igreja: casamento, namoro ou um simples “ficar”?


Esse pequeno artigo tem em vista a relação igreja-pastor. Nossa metodologia é simples: Vamos criar uma história fictícia para ilustrar o início dessa relação e suas implicações. Lembre-se, qualquer semelhança é “coincidência”. Vamos escolher nomes excêntricos tanto para o pastor quanto para a igreja. Nosso pastor será chamado de Adventício de Pára-quedas da Silva e a igreja será chamada Igreja do Fica.

AS EXPECTATIVAS.

A chegada de um pastor a uma igreja gera uma expectativa muito grande. Por “muito grande” quero dizer “muito variada”. Um simples teste confirmará essa realidade: Pergunte a cinco membros de uma mesma igreja o que eles esperam de um pastor e eles te darão cinco respostas diferentes.

Alguns comparam essa relação a um casamento. Acho que, pelo modelo atual de convite e reconhecimento, acrescentaria mais elemento a essa metáfora: é um casamento feito às pressas. Mas, acho que pela forma como o encontro se dá e como termina, o “ficar” das "baladas" seria uma metáfora mais precisa, pois nesse modelo de relacionamento, um se achega e descarta o outro com muita rapidez e facilidade.

O PRIMEIRO ENCONTRO E O CONVITE

Como em qualquer primeiro encontro, pouco se conhece de cada um. De um lado um seminarista cheio de idéias e expectativas; cheio de frases de efeito, todas aprendidas, digo, decoradas, no Seminário ou nos seus incontáveis manuais de teologia. Aqui vale um parêntese para o papel do seminário na formação do pastor. Sendo direto e claro: Seminário não forma pastor. Ele dá suporte, o que é bem diferente. Na maioria das vezes, somente um suporte acadêmico. Só. E isso é muito pouco quando olhamos para o mundo do ministério pastoral. Não tenho nada contra seminários. Sou professor em um. Mas já vi seminaristas no último ano sendo chamado de pastor; já vi diretores de seminário sendo chamados de pastor só por ser diretor de seminário; já vi professor de seminário ser chamado de pastor, por ser professor de seminário. Que princípio está permeando essa realidade senão o de que o seminário é determinante na formação de um pastor? A idéia é: quem está ligado ao ensino no seminário ou é (por ser professor ou diretor), ou será (aluno) pastor. Ainda há os que buscam um seminário interno achando que terão uma formação melhor. Será? Se ele não consegue estudar no convívio da sua igreja, sem o isolamento proposto pelo seminário interno, conseguirá estudar quando estiver no ministério? Esclareço que não sou contra alguém procurar um seminário interno (sou fruto de um e não estou cuspindo no prato que comi), mas questiono o propósito de muitos que se chegam a eles. A lógica de muitos é: Seminário Interno = mais estudo, mais aprendizado. Seminário Externo= menos estudos, menos aprendizado. Se a sua perspectiva for essa, precisa entender melhor o que vem a ser aprendizado. A influência do seminário é tamanha, que as igrejas não conseguem enxergar no seu meio homens capacitados (em ensino e vida exemplar), e buscam no seminário o que possuem.

Voltemos ao primeiro encontro. Primeiro ele é convidado para pregar. Aqui o seminarista faz aquela seleção; um verdadeiro apanhado de seus sermões e seleciona aquele que já pregou "trocentas" vezes. Ele sabe pregá-lo sem anotações. O domínio é total. O povo não entende muito; é verdade. Alguns irmãos, que seriam caracterizados como analfabetos funcionais (muitos em nossas igrejas), não alcançam muito, mas concluem que o rapaz sabe das coisas. “Você viu na hora que ele falou uma palavra esquisita?”. “O homem sabe até hebraico”. “O que é hebraico mesmo?”; “Acho que é o irmão de Moisés”, "Que nada, é língua do povo chinês". Como se espera, as pessoas gostam. Geralmente mais da forma (homilética) do que do conteúdo (exegese). Imitando o apóstolo aos gentios, vamos a mais uma digressão. Agora sobre pregação. Aqui cito uma experiência pessoal. Quando prego uso um método (homilética) simples. Segue: 1) Leitura do texto; 2) Explicação do texto; 3) Aplicação. Só. Sem primeiro, segundo, terceiro....ponto; sem sentença de transição...Porque cito isso? Explico: Algumas vezes tenho recebido, logo ao descer do púlpito, uma "crítica velada" especificamente de colegas (pastores) sobre a minha pregação. Elas se repetem quase que ipsissima verba. É mais ou menos assim: "Muito simples, mas muito edificante". O que um pastor quer dizer para um colega quando diz que sua pregação é simples? Entendo, espero que esteja certo, que se trata uma questão de estética e não de conteúdo ou entendimento. Assim, parece que não é só o povo que valoriza mais a forma do que o conteúdo. Cuidado com o zelo extremado pela apresentação, você pode pregar por cima das cabeças do seu povo.

A segunda fase é marcada: uma sabatina. No princípio tudo bem, as perguntas são gerais, e ele se dá bem. Mas, o candidato logo nota que as perguntas não são as mesmas do exame doutrinário feito no final do seu curso de teologia. Ninguém cita grandes teólogos, nem se faz referência a qualquer palavra grega, nem ao menos se faz uma pergunta que exigiria uma “manobra exegética” mais aprimorada. Nada. Aqui voltamos a digressão feita no parágrafo anterior. O povo não quer saber de teologia por entender que esse é o papel do seminário. Aqui a igreja recuou e terceirizou seu ministério de formação de pastor. Uma pena. Ela, a terceirização, está em todos os lugares na igreja. Pense comigo: quem tem que receber bem o visitante? Quem tem que visitar? Quem tem que discipular? Quem tem que pregar o evangelho? Alguns não dizem, mas pensam: “Pra que fazer? A gente paga alguém para isso”.

Voltando a sabatina; de repente, um diácono, que já está na igreja há séculos, faz uma pergunta muito específica. Não vou citar a pergunta; você pode imaginar uma. Mas é daquelas que envolvem gosto pessoal. O seminarista pensa: “Se disser o que penso posso perder minha ‘vaga’”. Afinal, é o gosto do dono da igreja, digo, do diácono antigo. O momento é de tensão. O seminarista fala consigo mesmo: “Não seria bom interromper para dá uma ligada para seu professor de teologia?” Um “não” de uma igreja para muitos é o mesmo que o “não” para um salário no final do mês; ou, sendo mais específico, um não para o leite do filho. Ele resolve ser político. Não diz nem “sim”, nem “não”, e a igreja do Fica o aprova.

OS PARÂMETROS DE AVALIAÇÃO

Alguns meses passam e o Pr. Adventício percebe que a sabatina não terminou. Ele está sempre sendo avaliado, medido e julgado. Mas, que parâmetros os crentes usam para a avaliação de seus pastores? O que tem levado crentes a afirmarem que amam, odeiam, não gostam ou simplesmente suportam seus pastores? Garanto, que, para a grande maioria (não todos, claro), esse parâmetro está longe das Escrituras. Pelo menos foi assim com a Igreja do Fica. Aonde vão buscar seus parâmetros, então? Muito provavelmente no pastor da TV, ou quem sabe no pastor “do poder”. “Esse, sim, é um pastor de verdade”, dizem os empolgados. Outros vão buscar no pastor da igreja mais próxima. “Aquele sim é um pastor, ele faz…”. Há os que voltam ao antigo pastor e com suspiros dizem: “Ah, no tempo do pastor Fulano…bons tempos”. E, não tenham dúvidas, muitos, ainda encharcados da cosmovisão sacerdotal católica, supervalorizam seus pastores os tratando como “intercessores diferenciados”, verdadeiros "padres de gravata". Pior, há pastores que se vêem assim. “Somos os ungidos do Senhor”, afirmam. Aqui vale uma outra digressão para meditação: o uso da gravata não reforça essa deturpação? O que está por trás da distinção dos pastores por suas vestes? Sinto um leve cheiro de sacerdotalismo. Mas é bem leve. Entendo que as roupas (de todos) devem se enquadrar na formalidade que o evento (adoração formal) requer.

Voltando ao convite feito pela Igreja do Fica. Para onde vão os parâmetros de 1 Timóteo 3? Não vão; eles ficam presos no texto. Governar bem a própria casa, por exemplo. Como avaliar tal qualidade se o povo não teve tempo de convivência. Como saber se ele não é dado ao vinho? Como saber se ele realmente é irrepreensível? Em outras palavras, como ele tem “credibilidade” se todo convívio nessa relação foi previamente preparado? Aqui vale relembrar as palavras de Paulo em 1Timóteo 5.22, 24-5: “A ninguém imponhas precipitadamente as mãos. Não te tornes cúmplice de pecados de outrem…Os pecados de alguns homens são notórios e levam a juízo, ao passo que os de outros só mais tarde se manifestam. Da mesma sorte também as boas obras, antecipadamente, se evidenciam e, quando assim não seja, não podem ocultar-se”.

EFEITOS DE UM MODELO CAPENGA

O fato é que, no modelo da Igreja do Fica, o pastor entra sem o respeito conquistado na igreja. Ele para a igreja, assim como a igreja para ele, é uma incógnita. Em alguns casos, uma aposta cega. Dentro desse modelo, essa relação inicial é problemática, pois nesse processo de conquista de autoridade, pastores como Adventício assumem o que não lhes é exigido na Palavra a fim de conquistar os irmãos (falaremos disso no próximo parágrafo). No modelo bíblico, o pastor é indicado ou escolhido exatamente por já ter manifestado, no meio do seu povo, as qualidades apresentadas em 1 Timóteo 3. Até porque os parâmetros de avaliação de 1 Timóteo 3 exigem convivência. Ele é aceito porque é respeitado. Diferente de Adventício que foi aceito a fim de buscar respeito.

Nesse processo de busca por respeito, aceitação ou respaldo, o pastor vai além do que lhe é devido. Vamos pensar no pode ser feito por qualquer membro da comunidade dos santos: discipulado e batismo. Talvez o segundo item traga divergências, mas fica aqui a observação de que em Mateus 28:19 batismo está ligado à prática do discipulado. Em outras palavras, eu faço discípulo batizando e ensinando. Voltemos ao pastor Adventício e sua busca por reconhecimento. Para mostrar serviço à igreja ele jamais deixaria uma outra pessoa batizar. Isso certamente não decorre de uma exegese em Mateus 28, mas da insegurança de quem ainda não foi reconhecido. Monopolizando o batismo ele se torna mais necessário. A igreja, por sua vez, fica feliz porque se sente fazendo seu papel, quando, na verdade, o está terceirizando.

Vamos a um outro exemplo de “monopólio pastoral” ou “terceirização”. Mateus 18:15 diz: “Se teu irmão pecar contra ti, vai argüi-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão”. O irmão Metíodo chega para o Pr. Adventício e fala de um problema com outro irmão. Adventício sabe que não pode, nem muito menos deve se envolver na questão, pois a orientação do Senhor Jesus é clara: “entre ti e ele SÓ”. Mas, para mostrar serviço, ele se faz um verdadeiro bisbilhoteiro. Monopolizando a resolução de problemas entre irmãos ele se torna necessário. Se alguém perguntar a Adventício porque ele faz isso, acho que não saberá como responder, ou, procurará um verso perdido na Escritura para justificar sua atitude, mas o fato é que ele tem medo. Medo de não ser reconhecido; medo de ser confundido com um preguiçoso que não se envolve nos problemas dos irmãos; medo de perder espaço. Porque a busca pelo espaço? Porque quando um pastor chega na Igreja do Fica ele ainda não tem. Nessa busca por espaço, Adventício toma o dos outros. Aliás, se entendemos que autoridade envolve reconhecimento; nem autoridade Adventício tem. Ele a está buscando.

Que Deus ajude os Adventícios e as Igrejas do Fica a corrigir as sérias implicações do seu primeiro encontro. Que aquilo começou como um “fica” torne-se um casamento duradouro, como, pela graça e misericórdia de Deus, tem acontecido em muitas igrejas. E as igrejas que pensam em "ficar", que levem mais à sério esse relacionamento não dando saltos no escuro, mas buscando, no convívio da comunidade, homens aprovados por demonstrações de piedade e capacidade de expor a Palavra ("apto a ensinar"). Caso esses mesmos homens precisem de aperfeiçoamente teológico, há institiuições de ensino (seminários) que o ajudarão nessa área.

Julguem-me somente pelo que disse!!!

Batman Cavaleiro das Trevas: Uma análise


1 INTRODUÇÃO

No dia 18 de julho de 2008 estreava a continuação de Batman Begins (2005), Batman – Cavaleiro das Trevas (doravante, BCT) de Christopher Nolan. Sem dúvidas, um dos grandes sucessos do cinema americano dos últimos anos. BCT foi o terceiro filme mais rentável de todos os tempos[1].

Essa análise parte do pressuposto de que a mídia tem grande influência na formação dos indivíduos. Entretanto, não segue uma abordagem estritamente funcionalista que assegura um determinismo de “cima para baixo”. Ao mesmo tempo em que reconhecemos a influência da mídia, acolhemos as considerações do interacionismo de que “as pessoas ajudam a criar suas circunstâncias sociais e não simplesmente reagem a elas”[2].

Nessa pequena análise queremos primeiramente evidenciar, com dados incontestáveis, que BCT é uma obra que não somente merece ser avaliada como também é uma fonte apropriada de entendimento do nosso zeitgeist. Analisaremos as cosmovisões subjacentes, seus momentos de verdade bem como apresentaremos respostas bíblicas às questões levantadas na obra.

2 SINOPSE

Seqüência do sucesso de ação Batman Begins, Batman – O Cavaleiro das Trevas, volta a reunir o diretor Christopher Nolan e o astro Christian Bale, reprisando o papel de Bruce Wayne/Batman. Com a ajuda do comissário Jim Gordon e do novo promotor Harvey Dent, Batman se dedica a combater de vez o crime organizado em Gotham. De início, o trio se mostra eficaz, porém eles logo se vêem reféns de um poderoso criminoso conhecido como Coringa, que faz Gotham mergulhar na anarquia e força o Cavaleiro das Trevas a chegar mais perto do que nunca de ultrapassar a linha tênue que separa o herói do justiceiro[3].

3 RAZÕES E IMPORTÂNCIA DA ANÁLISE

Em primeiro lugar, a aceitação da massa. BCT. Pressupondo que a relação entre filme e sociedade é de natureza retroalimentativa (interacionismo), a aceitação da massa revela muito dela mesma bem como expõe a influência da obra no povo. É fato que em 2008 Batman já tinha noventa e nove anos. Pode-se, portanto, implicar que Batman teve tempo suficiente para criar várias gerações de fãs. Daí a razão de sua aceitação, pode-se sugerir. Mas trata-se de um grande engano explicar a aceitação de BCT somente pelo histórico do seu herói. Os parágrafos seguintes elucidarão a questão.

Segundo, trata-se de um filme que superou as expectativas da crítica especializada. Uma palavra sobre o contexto histórico ajudará a entender melhor. Para muitos, senão a esmagadora maioria dos admiradores de Batman, Batman e Robin (1997) acabou com a reputação do homem-morcego. Denominado de “horrível”, “infantil” (bobo), “sem conteúdo” e “caro”[4], o filme de Joel Schumacher, que estreou em 1997, foi um fracasso de crítica e de bilheteria. Para os fãs do Cruzado Encapuzado[5], Begins surgiu como o salvador da imagem do Cavaleiro das Trevas. Por outro lado, a aceitação de Batman Begins tanto da crítica quanto da massa criou um clima de ceticismo para com o próximo da série. A razão é simples: tratava-se de uma seqüência. Digo, uma seqüência de um filme muito bom. A reação clássica diante de uma seqüência é sempre a mesma, descrença e ceticismo.

Entretanto, BCT surpreendeu. A crítica reagiu empolgada[6]. Muitos deram nota máxima para a seqüência de Christopher Nolan (diretor). Comentário como os de Lais Cattassini (Cinema com Rapadura) revelam tal empolgação: “impossível não vibrar com cada segundo de filmagem”[7]. Tiago Siqueira (Cinema com Rapadura) assegura o lado positivo da obra: “Tenso e emocionalmente pesado, ‘Batman - O Cavaleiro das Trevas’ não é só um mero filme, mas uma experiência cinematográfica única. Uma obra-prima absolutamente recomendada”[8].

Em terceiro lugar, as atuações premiadas de um grande elenco. O cast contou com figuras renomadas e premiadas como Morgan Freeman (Lucius Fox), Michael Caine (Alfred), Heath Ledger (Coringa), Aaron Eckhart (Dent), Maggie Gyllenhaal (Rachel Dawes).

Em quarto lugar, a morte misteriosa de Heath Ledger. Ledger (Coringa) é um capítulo a parte. O reconhecimento da comunidade especializada foi unânime. MTV Movie Awards (EUA) o reconheceu como o melhor vilão, o Globo de Ouro (EUA), a BAFTA (Reino Unido) e o Oscar (EUA) o reconheceram como melhor ator coadjuvante. Isabela Boscov, comentarista da revista Veja, entende que Ledger elevou o padrão “um degrau acima” da atuação já premiada em Brokeback Mountain. Falando de sua interpretação, Boscov é direta, “é absolutamente antológica”[9]. Todas as premiações foram póstumas. Ledger faleceu no dia 22 de janeiro de 2008 – seis meses antes da estréia do filme. Sua morte misteriosa e prematura gerou especulações e criaram todo um clima de mistério em torno do filme. Muitos ligaram sua morte com os efeitos da interpretação de Coringa.

Em quinto lugar, e não menos importante, o conteúdo do filme. A despeito de se tratar de um filme de super-herói (geralmente ligado público infantil), BCT não é somente entretenimento. Não se trata de um filme reduzido a grandes explosões e grandes efeitos especiais. Ele exige inteligência dos seus “leitores”. A razão: BCT levanta grandes questões éticas e filosóficas. Sem dúvidas, não é um filme para crianças. Temas sobre justiça, o papel da lei, seus limites, o verdadeiro papel de um herói, loucura e caos são traçados. Soma-se a isso o fato de que esses mesmos temas não são abordados em pequenos lampejos, mas em grandes diálogos tornando-se a tônica da obra.

4 COSMOVISÕES SUBJACENTES

4.1 Ausência de Sobrenatural.


Batman é um super-herói diferente. É um herói sem poderes sobre-humanos. Não sofreu nenhuma mutação, não veio de outro planeta, é repleto de cicatrizes, tem crises psicológicas, sofre por um amor não resolvido e é perseguido pelo “fantasma” da perca prematura dos seus pais (determinante em quase tudo em sua vida). Ele não somente ajuda os policiais como também é salvo por eles. Suas virtudes são exclusivamente humanas. Especificamente, são virtudes intelectuais e físicas (e.g., habilidade nas investigações, grande aptidão em artes marciais e, sem máscara, um excelente homem de negócios). Podemos dizer que Batman é o legítimo e verdadeiro Super-Homem. Por isso é o herói “mais próximo” do seu público.

Essa característica tão marcante do homem-morcego, ignorada por Joel Schumacher em Batman e Robin (1997) foi reverenciada e levada às últimas conseqüências por Christopher Nolan (diretor) em BCT. Para Nolan, realidade significa ausência do sobrenatural.

Nolan tentou evitar o uso de recursos computadorizados. Seu objetivo é evitar, ao máximo, no espectador, o referencial de ficção. Por isso, toda as explosões são reais. Uma das cenas grandiosas do filme é a destruição do hospital de Gotham. Aqui Nolan não fez qualquer manipulação de imagem. Um prédio real foi destruído. No filme, é Ledger (Coringa) que aciona os explosivos. Foi exatamente isso que aconteceu. Não há manipulação de imagens. Outro exemplo se dá com os equipamentos do Batman. Todos reais. Sua moto, assim com sua armadura, realmente existem e podem ser utilizadas na prática. Essa busca contumaz por uma maior realidade determinou o custo do filme (180 milhões de dólares) bem como a rejeição de alguns personagens como Pingüim. Para Nolan, o Pingüim destoava do universo realista dessa série.
A realidade (ausência do sobrenatural) do Batman também pode ser vista em suas limitações. Em uma das cenas primorosas do filme, o Coringa coloca Batman em um dilema: ou ele salvaria a vida de sua amada (Rachel) ou a vida do promotor público (Dent). Revelando as limitações do herói o Piadista afirma: “Você não pode fazer nada com toda sua força”. E realmente Batman não consegue. Aliás, ele não consegue salvar nenhum deles.

Um dos efeitos dessa busca pela realidade (sem sobrenatural) é nos aproximar do herói, sua história, seus sentimentos, bem como seus ideais. A priori se você tem uma boa saúde, muito dinheiro e um ideal, você também pode ser um Batman. Porém, como ele, não resolverá todos os dilemas da vida.

4.2 Moral e Ética.

Os heróis convencionais seguem as regras. Eles não mentem (geralmente omitem), não invadem a privacidade de trinta milhões de pessoas e não torturam. Não é assim com o Batman. É fato que há certo e errado em BCT. Em outras palavras, há moral para o Cruzado Encapuzado. Porém, isso não é o mesmo que seguir a ética vigente. Ética e moral são distintos. O primeiro pode ser mudado e violado enquanto o segundo deve ser obedecido.

Batman vai além do conceito convencional de herói. Segundo o filme ele é melhor que um herói. A obra deixa patente que ser herói não basta. Ele é o agente do bem, mas não pode estar preso as amarras da ética. Alfred, seu mordomo e conselheiro, afirma que Batman é a única pessoa pode tomar a decisão correta, pois ele está além da lei, ele não responde à lei, ele está “nas trevas”.

Para BCT, a verdade e o legal são utópicos. Apesar de existir certo e errado, sua aplicação é irreal. Alguém tem que se sacrificar. Alguém que não está preso as amarras da ética convencional. Em sua carta de despedida, Rachel, amiga e amada por Batman, afirma: “O mundo vai sempre precisar do Batman”. Respeitando o contexto da declaração, ela quis dizer que nunca vai surgir um herói “sem máscaras” que siga as regras plenamente – um cavaleiro branco.

Como todo homem sem referencial fora de si mesmo, Batman tem suas próprias regras. Tem moral, mas é ele quem a determina. Sua ética não é baseada em um senso moral a priori (infinito e universal). “[…], a posição moral de Batman se origina de uma apreciação da complexidade do comportamento humano e das formas extremas que ele pode assumir”[10]. Sua única regra é não matar. Porém, essa regra está ligada a sua experiência de orfandade prematura e traumática.
A postura de Batman lembra o viver autêntico do existencialismo de Martin Heidegger[11]. Segundo o Coringa, poucos se encaixam nessa categoria. Batman e o próprio Coringa seriam um desses. Um (Batman) escolheu combater o crime, o outro (Coringa) escolheu o cinismo e a loucura. A máfia bem como a polícia, por outro lado, são idiotas (palavras do Coringa) porque, como a grande maioria, é escrava do sistema. Segundo Joker (Coringa), “o código de honra deles é uma piada (joke) ruim”.

A tese do coringa é que as pessoas são tão boas quanto o mundo (sistema) permite. Não há uma regra universal. No primeiro sinal de problema ou pressão, o ser humano abandona seus códigos éticos. Se o sistema permitir, diz o Coringa, as pessoas devorariam umas as outras. “Anomalias” como Batman e Coringa seguem sua “vida autêntica”. A diferença, afirma o Coringa, é que agora o sistema precisa do Batman, por isso o aceita, mas logo o expulsará como a um leproso. Para o Piadista (Joker), sua rejeição se dá por estar na vanguarda. Ele está além do Batman. O homem-morcego ainda está preso a regras. E a para o Coringa o único jeito de viver de uma forma sensata é não ter regras.

Há certa indefinição e/ou incoerência na postura moral do Batman. Ora ele parece ser um deontologista[12] quando não somente não consegue matar o Coringa [sua única regra] como também o salva e luta com a culpa de mortes que não foi o responsável direto[13]; ora é um perfeito adepto pragmatismo e/ou utilitarismo quando se sacrifica sendo odiado escolhendo a mentira como consolo para o povo. Batman é um enigma entre o mocinho e o ladrão, entre o que é correto fazer, ou os limites, para o combate ao crime, as injustiças e o que é, de certa forma, ilimitado pela maldade, crueldade ou o desejo de realizar, pelo mal, o inimaginável. Ele faz o que é moralmente certo, mas “nas trevas”, ou seja, é um fora da lei.

4.3 Pessimismo.

A realidade e proximidade do Batman para com o ser humano não são moldadas pelo romantismo do modernismo. Por mais que o herói seja inteligente, hábil fisicamente, possua ideologia e seja um dos homens mais ricos do mundo, ele não resolve tudo. Aliás, ele não consegue resolver seus próprios problemas.

O objetivo do herói do filme é dos mais nobres: inspirar o bem. No entanto, sua existência atrai criminosos cada vez mais loucos como o Coringa. Com toda sua força o herói perde sua amada, e, nas palavras do promotor Dent (aprovadas pelo próprio Batman), ele não passa do produto da indiferença e/ou crítica do povo. Aquele em quem Batman aposta suas fichas para ser o verdadeiro herói de Gotham, o herói sem máscara e seguidor da lei, acaba se tornando um criminoso – chamado posteriormente de Duas Caras.

O pessimismo não está presente somente no insucesso de Batman, mas na relação de dependência ontologia entre o bem e o mal na qual Batman e Coringa estão presos e são seus estereótipos. O filme coloca o bem como uma resposta ao mal, enquanto o mal só existe porque há o bem para combatê-lo. Coringa diz para Batman: “Eu te matar? Eu não quero te matar, você me completa...”. Em outro diálogo Coringa diz: “acho que nós dois estamos destinados a fazer isso para sempre”.

Batman é um homem tentando resolver os problemas do seu povo. Porém sem sucesso. O coringa é um louco, autodenominado agente do caos, que tem seus planos, ora realizados com sucesso, ora é frustrado. Batman e Coringa representam a luta sem fim entre bem e mal.

Há uma máxima que sintetiza o filme. Ela aparece tanto no início como no fim da obra. Primeiro na boca do promotor público (Harvey Dent), posteriormente pela boca do próprio Batman. Segue: “Ou você morre herói ou vive o bastante para ver você mesmo se tornar vilão”. Esse aforismo é realizado tanto na vida do promotor que começa como a grande solução para Gotham e se torna um assassino movido pela vingança e termina com Batman que assume os crimes que não cometeu para manter a imagem do promotor. Ou seja, se alguém planeja fazer o bem, só poderá morrer herói se morrer cedo, caso contrário, se tornará um vilão (pela prática ou pela reputação). É uma questão de tempo. Nada mais pessimista.

4.4 Esperança Existencialista.

Se a eternidade é cíclica e o mal e o bem sempre existirão, o que fazer, então? Batman prefere a fé (esperança) na mentira do que a verdade que não produz esperança. Segue seu último diálogo no filme logo após a morte do símbolo de esperança – o promotor Harvey Dent denominado “Cavaleiro Brilhante”:

– As pessoas vão perder a esperança (Comissário Gordon).
– Não vão não. Eles nunca vão saber o que ele fez (Batman).
– Cinco mortos. Dois policiais. Não se pode varrer isso (Gordon).
– Não. O coringa não pode vencer. Gotham precisa de um herói de verdade (Batman).
– Não. (Gordon)
– Ou você morre herói ou vive o bastante para ver você mesmo se tornar vilão. Eu posso ser as duas coisas. Porque não sou herói. Não como Harvey. Eu matei aquelas pessoas. É o que sou (Batman).
– Você não é (Gordon).
– Eu sou o que Gotham precisar […] Às vezes a verdade não basta. As pessoas merecem mais. Às vezes as pessoas merecem ter sua fé recompensada. (Batman)[14].

Destaque para sua última declaração. Para Batman, a dura realidade de uma vida sem esperança pode ser substituída pela mentira (aqui no caso não é o mesmo que omissão). Para o Cavaleiro das Trevas, a recompensa para fé é a realização da mesma, mesmo que seja um embuste. O que não se pode é parar de esperar. A mentira é um mal menor diante da falta de esperança. Nesse mundo de injustiças o povo precisa acreditar. É isso que move as pessoas.

5 MOMENTOS DE VERDADE.

5.1 Os Limites da Justiça Humana.


Eclesiastes 3:1-15 nos assegura que Deus tem um plano grandioso que abarca todos os homens e suas ações em todo o tempo. O homem não decide o seu nascimento e uma vez vivo descobre que pode morrer e ele não decidiu isso. O mesmo acontece com os vegetais. É Deus quem controla todas as coisas. Nesse mesmo contexto o autor nos revela que Deus colocou a eternidade no nosso coração sem dá condições de resposta sobre o princípio e o fim. Precisamos de Deus, precisamos de Sua revelação sobre a vida, os valores, o certo, o errado e o bem. Em 3:16-4:16 O autor apresenta algumas anomalias e aparente contradições do que acabou de assegurar quanto ao controle de Deus. O verso 11 diz que Deus fez tudo “formoso”. Mas, o verso 16 diz: “Vi ainda debaixo do sol que no lugar do juízo reinava a maldade e no lugar da justiça, maldade ainda”.

O Pregador observa que aonde deveria ter justiça encontramos maldade. Diante desse quadro aonde lançar nossas esperanças? O texto responde: “Então, disse comigo: Deus julgará o justo e o perverso; pois há tempo para todo propósito e para toda obra”. Em outras palavras, não justiça plena enquanto o homem for seu único agente.

O filme revela as limitações que a lei (queda) impõe na aplicação da justiça “maior” (criação). Não dá para fazer o certo estando “preso” a lei. Por duas razões: as limitações da própria lei bem como as limitações dos que a aplicam (queda). Usando a terminologia do filme, é preciso fazer a justiça “nas trevas”.

A constatação de que não se alcança verdadeira justiça pela força do homem é correta (queda). Não são poucos os que procuram justiça nos meios convencionais e experimentam frustração. Esperar pela justiça “dos homens” é esperar demais. O grande diferencial se dá em como devemos reagir diante de tal constatação (redenção). Aqui os cristãos se separam de tanto do Coringa quanto do Batman. Os cristãos confiam em Deus. Romanos 12.19 é claro: “…não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor”.

O herói das trevas, como nos mitos antigos, não deixa de ser (ou querer ser) um deus que resolve tudo com suas próprias mãos (queda). Como cristãos, ficamos com a constatação, porém mudamos na reação. Lutamos reconhecendo nossas limitações esperando que no final a justiça plena venha por meio de Deus (redenção).

5.2 Tendência ao mal

Antes de adentrar ao assunto, faz-se necessário descrever uma cena crucial: O Coringa coloca explosivos em duas barcas. Em uma delas estão “civis inocentes” (terminologia do filme), em outra, somente presos (condenados por roubo, morte etc.). O detonador dos explosivos da balsa dos presos ficou no poder dos cidadãos comuns enquanto o detonador dos explosivos da balsa dos “inocentes” ficou com os prisioneiros. O Coringa orienta ambas as balsas de que às 00:00hs ele vai explodir ambas caso uma delas não esteja já destruída. Ou seja, o barco que destruir o outro, estará livre. A hora chega e nenhum barco destrói o outro. Diante desse quadro Batman diz a Coringa: “O que você quer provar? Que lá no fundo todos são podres (ugly) como você? Só você é podre […] “Essa cidade acabou de mostrar que está cheia de pessoas que só acreditam no bem”[15].

O fato é que o Coringa nesse ponto está certo. A maioria do barco dos “civis inocentes” decide por explodir o outro barco. E no barco dos presidiários, um grupo decide matar o responsável pelo barco para explodir o outro. Ambos os barcos querem explodir o outro, mas, ou não têm coragem (o barco dos “inocentes”) ou falta oportunidade (o barco dos condenados). Não faltou vontade (desejo), faltou coragem e oportunidade.

Em resposta ao Batman, o Coringa afirma que o espírito da cidade não se corrompeu completamente ainda, mas quando souberem dos atos “heróicos” do promotor (assassinou cinco pessoas) as cadeias vão ficar cheias. Ele (Coringa) colocou Harvey Dent no mesmo nível dele mesmo e do Batman. Ele agora fazia parte do grupo dos fora da lei. Segundo o Coringa, isso não foi difícil.

Batman no fundo acredita no coringa, por isso escolhe mentir sobre o Harvey assumindo seus crimes. Ele sabe que, no fundo, o povo vai se rebelar ao saber que o promotor, a esperança de Gotham, é um assassino. Essa é a tendência da humanidade. Nas palavras do Coringa: “A loucura é como a gravidade, basta um empurrãozinho”. Se o sistema permitir, afirma o piadista, “as pessoas civilizadas comerão umas as outras”.

6 RESPOSTAS BÍBLICAS PARA ALGUMAS QUESTÕES.

6.1 O Sistema e o Indivíduo.


No filme a população ou a “massa” muda de acordo com as condições. Ora apóia o Batman, no entanto, logo após o Coringa começar a matar pessoas ameaçando não parar até a revelação do mascarado, todos queriam a revelação de sua identidade; o que significava o fim de sua vida de herói e o começo de uma vida de prisioneiro.

“Loucura é como a gravidade, basta um empurrãozinho”, diz o vilão. O Coringa defende a idéia de uma influência determinante do sistema nos indivíduos. Para ele, se colocarmos (e isso inclui o sistema) as pessoas em situações de tensão que elas revelarão quem realmente são – loucas e sem moral. Isso fica claro quando afirma que “as pessoas são tão boas quanto o mundo (sistema) permite”. O próprio Batman acredita nisso, quando no final do filme entendeu que a mentira sobre uma instituição (promotoria pública) era o melhor para o povo.

A perspectiva Teo-referente, por outro lado, assegura que nossa cosmovisão é o produto do nosso coração pecaminoso e apóstata somado às estruturas psíquico-sociais e histórico-culturais (e.g., educação [formal, e principalmente familiar nos primeiros anos de vida], cultura regional, relacionamentos, meios de comunicação). O relacionamento dessas duas nuanças (interna e externa) da construção da cosmovisão humana deve ser entendido como camadas sobrepostas. O coração (substrato interno da existência humana) é a matriz primordial seguida das camadas supracitadas.

Pressupondo uma antropologia bíblica, o homem, devido ao pecado, conseqüentemente, não interpreta a vida de forma neutra ou vazia como se fosse, nas palavras do empirista inglês John Lock, uma tabula rasa. Pelo contrário, o coração humano é religioso por natureza e após a queda esse coração continua sendo para-Deus, porém em rebelião.

As Escrituras nos revelam que essa esfera ou dimensão que chamamos de “coração” é a mais profunda do nosso ser (self), e por isso, inacessível a toda forma de análise ou procedimento de sondagem empírica (cf. Sl. 139.23, 24; Jr. 17.10). O acesso só se dá pela Palavra através do Espírito (1Co. 2.13-15; Hb. 4.12). A mudança radical de uma cosmovisão é o que a Escritura chama de “regeneração” (Jo. 3.3,4; Tt. 3.5).

Em síntese, o sistema tem seu papel na formação das cosmovisões, porém não é determinante. Isso eliminaria a culpa do indivíduo. “A idolatria [no sentido de pecado] é um problema profundamente enraizado no coração e poderosamente impingido sobre nós pelo ambiente social”[16]. A complexidade do ser humano não permite que façamos declarações como as que o Coringa fez. Nossa tendência, sim, é para o mal. Mas como ele se revelará é outra história. O mal não tem uma só face (Cl. 2.23; 2Co. 5.12; 2Co. 11.14).

6.2 O Bem e o Mal.

Muitas são as propostas que têm se levantado diante da problemática do bem e o mal – sua existência, origem, relação com Deus e entre si. Alguns têm diminuído o poder de Deus (teísmo aberto); outros versam que o mal não passa de uma ilusão (Budismo), o que gera outro problema: a ilusão do mal. Outros adotam a visão do Coringa. Entendem o bem e mal como entidades de dependência ontológica. O filme (através do Coringa) assegura que o bem como é uma resposta ao mal, enquanto o mal só existe porque há o bem para combatê-lo. Coringa diz para Batman: “Eu te matar? Eu não quero te matar, você me completa...”[17].

Para os reformadores o mal é definido como privatio actuosa. O ponto aqui é que o mal não pode existir em si e de si mesmo. Ele depende da corrupção do bem. A relação de dependência seria equivalente à do ferro e a ferrugem. O primeiro não depende do segundo para existir, mas o contrário é fato.

A incoerência de Coringa é facilmente refutada. Se o bem depende do mal, o mal passa a ser um bem encoberto. “Mas o mal do qual Deus extrai o bem é um mal verdadeiro. Da traição cometida por Judas contra Jesus vem o ato redentor da cruz, mas isso de forma alguma minimiza a perversidade do ato de Judas”[18]. Nessa concepção, para experimentar bem, o próprio Deus deveria experimentar o mal.

7 CONCLUSÃO

Filmes como Batman: Cavaleiro das Trevas revelam a saga de todos aqueles que tentam resolver seus problemas com suas próprias forças. Trata-se de um processo doloroso e cheio de revezes, pois todos os candidatos a herói precisam estar além das leis estabelecidas uma vez que no mundo “real”, justiça plena só se faz “nas trevas” da ilegalidade.

Todo herói como Batman é um candidato a deus, é autônomo, determina a razão de sua existência bem como sua moral. E todos aqueles que escolhem uma vida auto-determinada logo se depararão com suas fraquezas e, por conseguinte, em suas frustrações. Batman, assim com Coringa, é uma ovelha sem pastor; um guia de si mesmo; um cego teimoso que tateia sem o guia. Alguém a quem ter compaixão. Fiquemos, pois, com sua coragem, perseverança sacrificial e com a “identidade secreta” das boas obras.


BIBLIOGRAFIA

BATMAN cavaleiro das trevas. Direção: Christopher Nolan. Produção: Emma Thomas, Charles Roven, Christopher Nolan, Los Angeles: Warner Bros. Entertainment, 2008, DVD 1 (152 min).

BRYM, Robert J (et. al.) Sociologia: sua bússola para um novo mundo. São Paulo: Cengage, 2008.

CATTASSINI, Lais. Batman: O Cavaleiro das Trevas. disponível em: http://www.cinemacomrapadura.com.br/criticas/1191/batman__o_cavaleiro_das_trevas_(the_dark_knight_batman_begins_2_2008) Acesso em: 10 de setembro de 2009, 11:17:10 [itálico nosso].

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GANTOIS, Leandro. Batman e Robin. Disponível em: http://www.cinemaemcena.com.br/Critica_Detalhe.aspx?id_critica=2218&id_tipo_critica=1 Acesso: 16 de setembro de 2009; 10:42:11.
IRWIN, William (coord.). Batman e a Filosofia: o cavaleiro das trevas da alma. São Paulo: 2008.
MAIA, Diego sapia. Batman e Robin. Disponível em http://www.cinepop.com.br/criticas/batman4.htm Acesso em 16 de setembro de 2009, 10:33:41.
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SIQUEIRA, Tiago. Batman Cavaleiro das Trevas. Disponível em: http://www.cinemacomrapadura.com.br/criticas/1197/batman__o_cavaleiro_das_trevas_(the_dark_knight__batman_begins_2_2008) Acesso em: 10 de setembro de 2009, 11:20:45

SPROUL, R. C. Razão para Crer. São Paulo: Mundo Cristão, 1997.

NOTAS

[1] Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2008/08/10/_batman__cavaleiro_das_trevas_lidera%20_bilheteria_nos_eua_pela_quarta_semana-547664910.asp Acesso em: 09 de setembro de 2009, 09:28:21.
Último segundo IG disse: O novo filme do Batman, "O Cavaleiro das Trevas", bateu todos os recordes de bilheteria nas sessões do final de semana nos cinemas dos Estados Unidos. A estréia deixou bem atrás a marca sem precedentes conseguida por Homem Aranha. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/2008/07/21/santo_blockbuster_batman_o_cavaleiro_das_trevas_arrasa_nas_bilheterias_1459434.html. Acesso em: 09 de setembro de 2009, 09:35:19.
[2] BRYM, Robert J (et. al.) Sociologia: sua bússola para um novo mundo. São Paulo: Cengage, 2008, p.19.
[3] Disponível em: http://wwws.br.warnerbros.com/thedarkknight/ acesso: 17 de setembro de 2009; 09:30.
[4]Alguns comentários disponíveis em: http://www.cineplayers.com/filme.php?id=1251. Acesso em 16 se setembro de 2009; 10:29:13. Segundo Diego Sapia Maia, “O problema é que Batman & Robin não deixa espaço para interpretações, investindo em bobagens e clichês” (cf. http://www.cinepop.com.br/criticas/batman4.htm Acesso em 16 de setembro de 2009, 10:33:41). Leonard Maltin disse que "a ''história'' freqüentemente não fazia sentido" e que "a ação e os efeitos são altos, enormes e entorpecentes" (cf. http://pt.shvoong.com/books/1694892-batman-robin/ Acesso 16 de setembro de 2009, 10:37:51). Leandro Gantois diz que “Quem poderia imaginar que depois de tantos anos de carreira o diretor Joel Schumacher iria fazer a maior besteira de sua vida, tantos sucessos e obras inteligentes no passado não foram suficientes para encobrir a porcaria feita neste quarto filme da série baseada no Homem-Morcego, o Batman (cf. http://www.cinemaemcena.com.br/Critica_Detalhe.aspx?id_critica=2218&id_tipo_critica=1 Acesso: 16 de setembro de 2009; 10:42:11).
[5] Outro nome para Batman.
[6] cf. Crítica do New York Times: http://movies.nytimes.com/2008/07/18/movies/18knig.html?scp=2&sq=
July%2018%202008&st=cse. Acesso em: 22 de setembro de 2009; 09:22:41.
[7]CATTASSINI, Lais. Batman: O Cavaleiro das Trevas. disponível em: http://www.cinemacomrapadura. com.br/criticas/1191/batman__o_cavaleiro_das_trevas_(the_dark_knight_batman_begins_2_2008) Acesso em: 10 de setembro de 2009, 11:17:10 [itálico nosso].
[8]http://www.cinemacomrapadura.com.br/criticas/1197/batman__o_cavaleiro_das_trevas_(the_dark_knight__batman_begins_2_2008) Acesso em: 10 de setembro de 2009, 11:20:45.
[9] cf. CATTASSINI, Lais. Batman: O Cavaleiro das Trevas. disponível em: http://www.cinemacomrapadura. com.br/criticas/1191/batman__o_cavaleiro_das_trevas_(the_dark_knight_batman_begins_2_2008) Acesso em: 10 de setembro de 2009, 11:17:10 [itálico nosso].
http://veja.abril.com.br/videos/cinema/batman-cavaleiro-trevas-393880.shtml acesso: 17 de setembro de 2009; 09:01:12.
[10] HOWARD, Jason J. Noites Escuras e o chamada da Consciência. em IRWIN, William (coord.). Batman e a Filosofia: o cavaleiro das trevas da alma. São Paulo: 2008, p.182.
[11] Segue uma definição de homem autêntico: Honesto para consigo mesmo sobre o que está ou não sob nosso controle, leva à sério inevitabilidade da morte bem como assume a responsabilidade total pela direção de sua vida e deixa claro o propósito e o significado daquilo que faz. Aqui vale lembrar as palavras de Chesterton: “É mais verdadeiro dizer que um homem que confia em si mesmo certamente fracassará” (CHESTERTON, G. K. Orthodoxy, Massachusetts: Hendrickson, 2006, p.10).
[12] A figura mais influente da ética deontológica é grande filósofo Immanuel Kant. Segundo Jensen: “A contínua recusa de Batman em matar, enquanto prossegue em sua missão, ainda que seja o Coringa, é um exemplo perfeito do compromisso dele com uma razão moral deontológica” (JENSEN, Randall M. A Promessa de Batman. Em IRWIN, William (coord.) op. cit., p. 85).
[13] Em um dos diálogos com Batman, Coringa declara “Você é mesmo incorruptível”. E continua: “Você não vai me matar por algum senso equivocado de falso moralismo”.
[14] BATMAN cavaleiro das trevas. Direção: Christopher Nolan. Produção: Emma Thomas, Charles Roven, Christopher Nolan, Los Angeles: Warner Bros. Entertainment, 2008, DVD 1 (152 min).
[15] BATMAN cavaleiro das trevas. Direção: Christopher Nolan. Produção: Emma Thomas, Charles Roven, Christopher Nolan, Los Angeles: Warner Bros. Entertainment, 2008, DVD 1 (152 min).
[16] POWLINSON, David. Ídolos do Coração e Feira das Vaidades: vida cristã, motivação individual e condicionamento sociológico. Brasília: Editora refúgio, 1996, p. 33.
[17] A versão portuguesa diz: “eu preciso de você”.
[18] SPROUL, R. C. Razão para Crer. São Paulo: Mundo Cristão, 1997, p.85

Ah! que profunda tristeza saudosista jubilosa!

Todos sabem que as palavras têm peso e que trazem, sim, significados. Ou seja, há verdadeira comunicação no uso dos “símbolos lingüísticos” (escritos ou falados). Quem tentou negar isso, contraditoriamente, usou a própria língua para comunicar que não existe verdadeira comunicação. Loucura total!

Apesar de acreditar no poder das palavras para comunicar, sei que elas muitas vezes não abarcam a complexidade das nossas experiências. É como se tivéssemos um tipo de “vácuo lingüístico”. Em outras palavras, “faltam as palavras”. Às vezes isso se dá por que nosso vocabulário é pequeno e pobre, mas, às vezes, a razão é simples: elas não existem.

Essa semana tive uma experiência complexa. Uma mistura de tristeza profunda, amor, saudade e alegria. Então pensei: se alguém me perguntar como estou, o que vou responder? Como chamar isso? Difícil; acho que está no chamado “vácuo lingüístico”. Como não encontrei nenhuma palavra, acoplei três como um só conceito. Chamei meu sentimento de “tristeza saudosista jubilosa”.

Explico: Essa semana um grande amigo, digo, um dos meus irmãos do coração (são pouquíssimos), foi surpreendido por assaltantes. Não tenho os detalhes, pois estou em viagem, mas o que sei é bastante para se concluir que foi uma experiência extremamente dolorosa. Uma arma foi apontada para a cabeça do seu filho. Mesmo nessa condição extremamente crítica de invasão, impotência, ameaça da perca do filho, ele pregou. É isso mesmo. ELE PREGOU A CRISTO.

Foram inúmeras as ocasiões em que pude ouvir ou até mesmo “ver” nos telejornais pessoas em condições semelhantes e até piores à do meu amigo. Fico triste. Mas, geralmente passa. Passa logo. Por quê? Bem, são muitas as respostas possíveis e não me atrevo a responder. Mas por que não me esqueci do meu amigo? Porque continuo a pensar nele? Não tenho todas as respostas, mas me arrisco a responder:

Acho que temos uma ligação de espírito. Se é que essas palavras explicam alguma coisa. O fato é que temos uma relação profunda e extremamente misteriosa ao ponto de que sinto, não exatamente o mesmo que ele sentiu, claro, mas posso me colocar no seu lugar. O sentimento que me sobreveio quando fiquei sabendo da sua experiência foi na verdade uma grande salada sentimental. Fiquei triste, pois mexeram com algo de grande valor para mim. Poderia dizer que mexeram comigo. Fiquei saudoso, pois não pude está lá para dividir as aflições com o meu ouvir, com as palavras e com abraços; e ao mesmo tempo fiquei alegre por seu crescimento espiritual revelado na pregação da Palavra em um ambiente de crise. Ou seja, se alguém quer saber como estou. Eis a resposta: Estou com uma “tristeza saudosista jubilosa”. Foram as palavras que encontrei. Acho que comuniquei. Não tudo, mas comuniquei.

Com lágrimas alegres,

Te amo Arthur Luiz, Francileide e Levi.

Mas, o Senhor vos ama muito mais…vocês são “BIGS”

“…há amigo mais chegado do que um irmão” Pv. 18.24.

Somos mercenários! Aleluia!

As quartas-feiras dos cristãos evangélicos brasileiros são marcadas pelo chamado “culto de oração”. Ali os crentes apresentam seus desejos e agradecimentos. É um tipo de culto de “testemunho coletivo”. Uma das facetas interessantes desse tipo de culto é que pode-se conhecer muito do povo (igreja), pois nele há liberdade de expressão, algo quase ausente em outras programações. E é exatamente nesta “esfera espiritual” de compartilhar que, pasmem, podemos encontrar muitos testemunhos mundanos, na sua forma mais sutil, evidentemente. Especialmente, na área da vocação e financeira.

Vou criar uma situação para um melhor entendimento:

O pastor abre espaço para que os irmãos compartilhem seus pedidos e agradecimentos. O irmão “x” ergue o braço rapidamente e pede uma oportunidade para compartilhar uma grande bênção: “Pastor, queria agradecer, pois nessa semana recebi uma proposta de trabalho muito boa. Vou receber duas vezes mais do que ganhava”. “Aleluia” diz o irmão do lado. “Amém”, diz uma senhora à frente. Muitos meneiam a cabeça positivamente, outros arregalam os olhos admirados. Pensemos que na semana que se segue ao agradecimento, o pastor compartilha um outro agradecimento: “Queria compartilhar com os irmãos uma bênção. Estou deixando o ministério pastoral, pois recebi um convite para ser representante de uma multinacional”. “Irmãos, e o melhor, vou ganhar o dobro”. Diferente do “aleluia” e do “amém”, da semana anterior, silêncio sepulcral.

Tenho certeza de que o segundo testemunho não seria acompanhado por um “amém” eufórico em muitas igrejas. Antes, por críticas do tipo “mercenário”; “como pode, trocar a obra de Deus por dinheiro?”. Esse tipo de reação se dá por um motivo simples: as pessoas entendem que Deus só chamou os pastores. Vocação hoje está restrita ao ministério da Palavra, ou melhor, da igreja. Os irmãos podem trocar de profissão por dinheiro, mas o pastor não. Trocar de profissão com um impulso “estritamente” ou “fundamentalmente” financeiro é mundanismo. Não há dúvidas disso. Entretanto, nas quartas-feiras, isso muitas vezes é confundido com “bênção”. É como se dissessem: "Somos mercenários!!!". E os irmãos respondessem: "Aleluia!!!"

O assunto torna-se revelante por pelo menos três motivos: 1) O tempo envolvido no trabalho. A maior parte do nosso tempo devotamos, ou ao preparo para o trabalho, ou no próprio trabalho; 2) A “frustração vocacional” é uma das causas para distúrbios familiares e matrimoniais; e, como exemplificamos acima, 3) A visão errada sobre o trabalho e /ou vocação. Segundo Reich: “Para a maioria dos ocidentais, o trabalho é sem sentido, exaustivo, entediante, servil, odiento, algo a ser ‘agüentado’, enquanto a ‘vida’ consiste no ‘tempo de folga’” (The Greening of America, p. 4-7). Nas palavras de Michael Horton, trabalhamos para o final de semana (O Cristão e a Cultura, p. 135-58).

UMA VISÃO REFORMADA

Porque uma “visão reformada”? Das tradições cristãs (protestante, reformada, anglicana e anabatista, pentecostal, católica etc.) a visão reformada foi a que mais colaborou para uma visão bíblica de trabalho bem como impactou o ocidente por sua valorização.

1. Nossa Relação com o Mundo.

A visão calvinista ou reformada da nossa relação com o mundo abre nossa perspectiva quanto a vocação. Segundo Kuyper, o reformado “reconhece Deus no mundo. Deste modo a Igreja retrocedeu a fim de ser nada mais nada menos que a congregação de crentes, e em cada departamento a vida do mundo não foi emancipada de Deus, mas do domínio da Igreja. A maldição não deveria mais repousar sobre o mundo em si, mas sobre aquilo que é pecaminoso nele, e em vez de vôo monástico do mundo o dever de servir a Deus no mundo, em cada posição na vida, é agora enfatizado” (Abraham Kuyper, Calvinismo). Enquanto que no catolicismo o trabalho se impõe, simplesmente porque não se pode dispensá-lo e não tem nenhuma relação com a vida espiritual; para o calvinismo trabalho é uma atividade religiosa, espiritual visto ser considerado uma vocação.

A Teologia Reformada enfatiza o “mandato cultural” ou a obrigação dos cristãos viverem ativamente em sociedade e de trabalharem para a transformação do mundo e suas culturas. Não há uma separação entre o secular e o sagrado. Em Calvino há a “sacralização do secular”. O chamado “mandato cultural” na teologia reformada é fundamentado no mandato de dominar e cuidar da terra (Gn. 1.28). Os reformadores enfatizavam que esse mandamento é tanto anterior como segue a entrada do pecado no mundo. Assim, não se deve ver o trabalho como resultado do pecado, mas como algo esperado de todo ser humano. E o fato de possuirmos a imagem de Deus nos dá a capacidade de obediência.

2. Nossa Capacidade e Prazer – Um Reflexo da Graça de Deus e da Vocação.

Para o grande reformador de Genebra, as capacidades humanas são frutos da graça divina (Institutas, II, II, 17). Se temos capacidades, isso se deve a atuação de Deus em nossas vidas. Essa capacidade (algo objetivo e observável), juntamente com o prazer corretamente motivado (subjetivo) a ela (a vocação) relacionada, podem revelar, portanto, o plano de Deus para a vida do indivíduo – a sua vocação. Para muitos reformados (e.g., R. C. Sproul em Discípulos Hoje), desses dois elementos (capacidade e prazer corretamente motivado; objetivo e subjetivo), o segundo é o mais importante e, por isso, determinante. A motivação e o prazer são essenciais na escolha de uma profissão ou no reconhecimento da sua vocação.

3. As Dificuldades Decorrentes de se Desprezar a Vocação Divina.

Sem reconhecer nossa vocação, seremos movidos pela ambição e a cobiça. Essa não é a tônica somente nos cursinhos de vestibular, mas nos lares dos crentes. É comum ouvir os pais dizerem para os filhos: “Vai estudar para ser gente”. Ser “gente” em muitos dos que proferem essa sentença é o mesmo que trabalhar e ganhar dinheiro. Digo, ganhar dinheiro. Não são poucos os que erguem suas mãos nos cultos de oração e pedem que os filhos sejam aprovados no vestibular. A pergunta é: Por quê? Para quê? Resposta: “Ser gente”.

Vou dá um exemplo envolvendo meu filho. Houve uma época em que ele queria ser pedreiro. Quando comunicava esse desejo para alguns irmãos as reações, na grande maioria, eram de reprovação. Por quê? Simples: a profissão de pedreiro não tem status social, glamour, e, principalmente “segurança financeira”. A igreja está cheia da "Teologia do Tim Maia". O Cantor carioca dizia: "Ora bolas, não me amole com esse papo, de emprego. Não está vendo? Não estou nessa. O que eu quero? Sossego, eu quero sossego". Já estou ouvindo um amém!!!

Um outro problema em desprezar a vocação é que abarcaremos muitas coisas ao mesmo tempo. Não é difícil encontrarmos pessoas mudando de curso e emprego com muita facilidade. É verdade que muitos trocam de emprego por falta de opção, mas isso não representa toda a realidade. Na verdade, não são poucas as pessoas que ficam pulando de galho em galho, inconstantes. E a razão é simples: não tem foco, ou tem o foco errado (e.g., dinheiro, status).

Calvino destaca a inquietação e a inconstância como decorrente do desprezo à vocação. Para ele, se não entendemos vocação, não haverá clara consonância entre as diversas partes de nossa vida. Muitos dos problemas conjugais, familiares e da nossa relação com a igreja estão ligados a falta de compreensão de vocação. Segue alguns exemplos de problemas envolvendo a vocação: Maridos ou esposas frustradas; filhos pressionados; filhos revoltados, fracos, inseguros, membros deprimidos por não poderem estar em TODAS as programações da igreja.

E, por último, Calvino nos alerta para o fato de que quando desprezamos nossa vocação, muito do que se fizermos não será aceito por Deus, mesmo que inspire o louvor dos homens.

4. Os Benefícios de Seguir a Vocação Divina.

Todo trabalho certamente tem seus problemas. Eles podem ser salariais, estruturais ou sociais. Seguindo a vocação, entretanto, suportaremos melhor as desvantagens, preocupações, os aborrecimentos, as angústias, pois o veremos à luz do chamado de Deus. Daí a razão de Calvino entender que uma vez considerada com o devido respeito a “vocação é o princípio e fundamento baseados no qual podemos e devemos governar bem todas as coisas” (Institutas, IV, XVII, 45 [edição de 1541]). Quando considerada, teremos uma vida bem ordenada, dirigida e consolada.


obs.: Não estou afirmando que não podemos trabalhar para ganhar dinheiro. Paulo deixa claro que devemos trabalhar para ajudar os necessitados bem como não ser peso para outras pessoas e isso seguramente envolve finanças. A questão é que esse não deve ser nosso alvo primeiro e/ou único - o fundamento de nossas decisões.

obs.2: Muitas vezes podemos trabalhar fora da nossa vocação, mas o que não podemos é perdê-la de vista.

“...não há obra por mais humilde e humilhante que seja, que não brilhe diante de Deus e que não lhe seja preciosa, conquanto que a realizemos no serviço e cumprimento de nossa vocação. João Calvino, Institutas, 1541, 4. xvii, 45.

De onde procedem guerras e contendas que há entre vós? De onde, senão dos prazeres que militam na vossa carne? Cobiçais e nada tendes; matais, e invejais, e nada podeis obter; viveis a lutar e a fazer guerras. Nada tendes, porque não pedis; pedis e não recebeis, porque pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres. Infiéis. Tiago 4.1-4a

"Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição". 1Timóteo 6.9

O dia em que a verdade ficou do lado de fora.


“Quem quer a verdade?”, “Olha a verdade!”, grita o feirante na praça matriz em Aquiraz. Terá ele uma boa venda? Conseguirá vender tudo? Particularmente acho que não. O clima não está para verdade. O preço é alto e os concorrentes são muitos. Há quem se empolgue com ela, mas a euforia não dura muito. Alguns olham, outros tocam, há quem se arrisque a provar, mas logo cedem. A “verdade pura” que o feirante oferece ao povo da primeira capital do Ceará vem junta a um pacote com muitas consequências. Alguns tentam negociar comprando a verdade sem levar o pesado pacote, mas o feirante é duro; ele não sede. Para ele, meia verdade é uma mentira inteira.



Perto dali, na câmara dos vereadores, um grupo de agentes de saúde luta pelo aumento salarial. Na verdade, trata-se de um aumento no “incentivo”. A câmara está lotada. A ATA é lida, mas em vão, pelo menos para mim. O “zum zum zum” corre frouxo e impede que se escute as decisões da última sessão. Explico: são as agentes de saúde acertando os últimos detalhes para o grande momento.


A sessão começa e a pauta tão esperada é apresentada. A proposta colocada é de 30% acima do valor já oferecido, 90 reais, ou seja, as agentes de saúde passariam a ganhar 117 reais de incentivo. Depois de feitas as colocações por um dos vereadores que havia acordado com as agentes antes da sessão, o som das palmas enche a câmara. As agentes estão eufóricas. É o aumento que está chegando. Logo em seguida, outro vereador faz uma colocação importante: “o aumento poderia ser maior, talvez acima de quinhentos reais”. “Vocês se contentaram com pouco”, repreende o representante do povo. Novamente as agentes aplaudem. Podem-se ouvir palavras de ordem. Entretanto, o primeiro vereador rebate assegurando que outras prefeituras não repassam essa verba como estava sendo proposto.

A pergunta ficou no ar: Quem estava com a verdade? O primeiro vereador? O segundo? Seria o primeiro um cara “pé no chão” que estava cedendo o que podia do orçamento em benefício do povo ou estavam retendo o que não lhe era devido? Seria o segundo um cara chateado com o desperdício de oportunidades das agentes ou só soltou uma informação duvidosa para criar um rebuliço colocando em cheque a “bondade” da proposta apresentada? Não sei. Sinceramente, não sei. Qualquer palavra aqui seria injusta, pois falta-me informações. Mas, fiquei esperando um debate com informações sólidas e precisas. Afinal é justo o aumento? É irresponsável? Não sei. Só sei que quem estava lá ficou sem a verdade.

Olhei para os outros vereadores, e o silencio, digo, a indiferença descomprometida os anestesiou. O feirante estava do lado de fora. Ninguém bateu palmas para ele. Mesmo assim, ele gritava “olha a verdade”, “quem quer a verdade?”. Os vidros não deixavam sua voz ressoar na câmara. O salário aumentou na mesma proporção em que o interesse pela verdade se esvaio. Naquela tarde de aumento salarial, o povo se contentou com o dinheiro (pouco ou muito, justo ou injusto, não importa), e com nenhuma verdade. O que não sabem é que a vida sem verdade sai caro e não há salário que pague.

O feirante se foi. Quem sabe na próxima sessão ele consiga vender seu produto. Alguém me disse que ele tinha oferecido a verdade em uma igreja, mas achavam que estava possesso por demônios e o expulsaram. Em outra, o povo estava mais preocupado com a saúde, com o salário, com os bens e, como os vereadores silenciosos da câmara, simplesmente o ignoraram. Pobre feirante. Vende um produto caro e que poucos buscam.

Naquela sessão da câmara alguém raciocinou da seguinte forma: "para que a verdade, se temos um aumento?", ou, "Para que a verdade se posso me promover com informações duvidosas?" ou ainda, "Para que a verdade, se ela torna as coisas mais difíceis?". Nem todos pensaram assim, mas todos foram apáticos. Os vereadores que se manifestaram levantaram-se em nome da verdade, é fato, mas nenhum com a resolução e o amor que se exige de quem a anuncia. A apatia dos outros se manifestou no silêncio. A velha omissão dos fracos.

As palavras de Jesus me vêm à mente: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Liberta o povo de Aquiraz Senhor.

Estética divina ou opinião própria?

Quem nunca testemunhou ou até mesmo protagonizou uma discussão por questões estéticas? Enquanto as questões são somente “discutidas”, tudo tranqüilo. Mas, o fato é que quando o assunto é “estética”, geralmente as pessoas não trocam ou compartilham idéias – elas guerreiam entre si.

Muitas das discussões quanto à estética são tão ou mais acaloradas do que as discussões envolvendo ética e moral. Talvez uma das razões esteja no fato de que a grande maioria das pessoas não entende as relações entre essas duas áreas e, principalmente, suas distinções. Muitos discutem estética como se fosse ética ou moral. Ou seja, discutem questões subjetivas com se fossem objetivas.

A igualdade pressuposta (e confusa) entre a moral e estética pode ser exemplificada colocando adjetivos morais e éticos em temas estéticos. Observe: “Esse quadro renascentista está ERRADO!” ou, “Essa arquitetura é PECAMINOSA”, “A gravata do pastor é INIQUA”, “O modelo do carro do irmão João é IMPURO; ou, sendo mais positivo, “ESSA cor é SANTA”; “Esse instrumento é “de Deus”, “a estampa da roupa da irmã é VIRTUOSA”.

Para o cristão, a discussão torna-se mais acalorada, porque ele fala “em nome de Deus”. Não são poucas as vezes que, com a mesma força que se combate a fornicação (questão ética, proposicional, clara nas Escrituras), declara-se que uma determinada música (questão estética) não é santa, não é “de Deus”. A questão aqui é “Deus tem um gosto”?, ou, “Qual a estética divina?”, “Deus gosta mais de azul ou branco?”, ou “Qual o estilo musical de Deus?”, “Aonde Deus revelou Seu gosto?”; “Deus tem UM gosto musical?”, “Dois? Três….?; “Existe objetividade no gosto?”

Dentro do campo da estética, o calcanhar de Aquiles no mundo cristão (especificamente o meu, Batista tradicional, regular, conservador…) está na música. Muitos querem criar, digo, determinar um estilo “santo”, “bíblico”. Para muitos, não há espaço para subjetividade na música. Trata-se de uma questão moral somente.

Antes de continuar, preciso fazer alguns esclarecimentos: 1) meu foco aqui está na questão do gosto pessoal e não na adoração coletiva (algo mais complexo). Estou pressupondo, portanto, que a música que escuto na igreja não deve ser necessariamente a mesma e a única da minha vida privada e vice-versa. Sobre essa relação (privado e comunitário) buscarei os princípios na esfera maior (adoração em Israel, por exemplo) pois não temos nas Escrituras palavras diretas sobre a música na vida privada. Bem, não há nada que seja permitido na esfera comunitária que seja proibido na vida privada. Já o contrário é verdadeiro; 2) Minhas críticas serão contra idéias, não contra pessoas. Tomarei uma crítica feita no meu blog por um leitor específico, porém ele será tratado como uma figura representativa, não como indivíduo. Assim como sua crítica será tomada como representando muitas outras pessoas, minha resposta não será pessoal, mas visando todos que são representados pelo meu crítico.

Explico: Em uma das minhas primeiras postagens (Preservando a Santidade na Igreja, parte 2, agosto de 2008) fui criticado por colocar um link de uma banda americana. A razão, diz o comentarista e crítico: “…a música possui um ritmo (rock) que não reverencia nem glorifica a Deus, já que estimula o corpo a movimentar-se e não a mente ao louvor ao Senhor”. Para esse leitor a música “desvia a atenção de Deus”. Na crítica ele ainda fala de “moral, santidade e pureza”.

Para nosso crítico (e muitos outros), o rock (expressão de arte - estética) não reverencia a Deus, é pecaminoso, irreverente, mundano, em outras palavras, é errado – é uma questão ética, moral e, por conseguinte, prescritiva. Entretanto, essa não foi a primeira crítica que ouvi sobre a temática. Contudo, todas as vezes que vejo alguém criticar um estilo musical qualquer (só cito o rock como exemplo, não focalizarei nesse estilo musical específico, nem estou defendendo ou acusando-o), fico esperando as referências bíblicas, as partituras celestiais, ou quem sabe um mp3 com as “Dez Mais” do céu.

A pergunta aqui é: baseado em que alguém diz que Deus não gosta de um determinado estilo musical? Parece que uma das bases do nosso amigo (e de muitos outros) é que, se um estilo musical estimula o corpo, ele está automaticamente condenado. E para ele, estímulo ao corpo parece necessariamente negligenciar a mente.

Algumas considerações como resposta:

1. Há um estímulo nos Salmos ao uso do maior número de instrumentos musicais possíveis. Junta-se a isso, o silêncio de Levítico quanto aos instrumentos musicais. Levítico fala das roupas, da comida, dos dias, das festas, das regras femininas, das doenças, mas não há regras que limitem instrumentos musicais. Além disso, a Bíblia mesmo revelando a origem dos instrumentos (a dinastia cainita - mundana) não os proibiu. É costume usar a origem dos instrumentos para condenar seu uso. Esse, entretanto, não é o critério de Deus.

2. Há uma diversidade de estilos musicais no saltério hebraico. Exemplos: os lagares [8.1], morte para um filho [9.1], corça da manhã [22.1], os lírios [45.1], não destruas [57.1], os lírios do testemunho [60.1], de Jedutum [62.1]…). Hoje não sabemos ao certo que estilos musicais são esses. Mas certamente muitos não gostariam desse “cantor cristão hebreu” diante da sua diversidade de estilos musicais. O que acontece muitas vezes é que se escolhe um estilo e o sacraliza. Ou, demoniza os demais. Não é assim com Deus. Há diversidade de estilos no manual de louvor de Israel.

3. E o que dizer da ordem bíblica direta envolvendo a dança (Sl. 150.4)? Geralmente alega-se que não temos todos os dados sobre a natureza dessa dança. Mas o que não se pode negar é que há “movimento corporal” envolvido no vocábulo hebraico. Se “movimento corporal” em um contexto de “música” não é dança, podemos dar outro nome, mas ainda assim é “movimento corporal” vinculado a “música”.

4. Na crítica que agora rebato, há um pressuposto antropológico (mais grego do que bíblico) de que o estímulo corporal é a priori pecaminoso. Será que a reação corporal é necessariamente pecaminosa? Se meu corpo reage a uma expressão de arte devo reprimi-lo? Ouvir uma bela canção e sentir prazer é pecaminoso? A arte visual não é corporal? A arte gastronômica não é corporal? Chorar não é corporal? Afinal, pode-se fazer ou sentir algo sem que isso tenha vínculo direto com o corpo? Existe realmente uma música que não estimule nosso corpo? Reprimir o corpo é o mesmo que reprimir o pecado? O que é mental, que não é corporal? E as expressões corporais bíblicas vinculadas a adoração como levantar as mãos, por exemplo? E o apelo de Paulo ao uso dos membros do corpo para a santificação.

5. O fato, que muitos não querem aceitar, é que Deus entregou muitas decisões (inclusive éticas) às nossas “consciências”. Há questões em que Bíblia simplesmente não se pronuncia de forma prescritiva. O estilo musical é um exemplo claro disso. Em muitos casos, a Escritura nem incentiva, nem proíbe. Ou seja, há espaço para subjetividade na vida cristã. Essa subjetividade envolve tanto a ética como a estética. A última muito mais por ser subjetiva por natureza.

6. A justificação da arte. Preciso justificar a arte? Para que uma música seja divina ela deve ter uma referência bíblica declarada? Para que um quadro tenha um espaço na sala de um cristão ele deve representar alguma história bíblica? A arte justifica-se por si mesma. Com isso quero dizer simplesmente que não precisamos explicar com um versículo bíblico porque gosto de amarelo e não de preto. Não preciso explicar porque gosto de futebol e de casa de campo? Não preciso explicar porque prefiro surf e não handebol. Eu gosto, só isso – é subjetivo, é pessoal. Deus nos criou assim - uma obra de arte.

7. Não se está justificando todo tipo de arte. Tratar a arte como distinta de ética e moral não é afirmar que não há qualquer relação entre elas. Há sim uma relação entre a arte e a ética ou a moral. Alguns valores morais usam a arte como instrumentos de divulgação. Alguns movimentos artísticos surgiram de pressupostos mundanos. Além disso, todo artista tem uma cosmovisão que aplica e/ou impõe em sua arte. O nú "artístico" é um exemplo extremo disso. Contudo, isso não desqualifica a arte da fotografia ou da pintura. O fato de alguém pregar (arte) contra Deus não desqualifica a arte da pregação ou da oratória.

8. Sobre a acusação de mundanismo surge a pergunta: "Afinal, o que é mundano?" Para muitos, trata-se de tudo que vem do mundo. A implicações lógicas dessa definição devem levar seus adeptos ou a formação de monastérios ou, no caso da grande maioria dos evangélicos, a criação de um "gueto gospel" (e.g., camisa gospel, caderno gospel, lanchonete gospel, ótica gospel,...) . A Bíblia fala de "mundo" tanto positiva (principalmente como uma referência à criação) quanto negativamente. Negativamente "mundo" refere-se "a ordem criada (especialmente de seres humanos e assuntos humanos) em rebelião contra seu criador" (CARSON, D. A. O Comentário de João, p. 123). A questão é: existe um estilo musical mundano "por natureza"? Existe algo inerentemente mal? Rock é mundano por quê? Alguns diriam que os cantores de Rock usam drogas, são bêbados. E o que dizer da literatura? Quem são os grandes escritores? Abrimos a boca com orgulho para dizer que lemos suas obras sem qualquer problema. Aceitamos a arte da literatura, do cinema e até da arquitetura sem buscar a “ficha corrida” dos artistas. E o estilo de sua casa? Que referencial tem? Em que escola de arquitetura ela se encaixa? Que igreja tem uma arquitetura bíblica? Existe isso? Que estilo musical ou instrumento musical foi criado pela igreja de Jesus Cristo? E se foi, quais foram os critérios? E se não foi, é mundano? Para meditação: O que é mais mundano, tomar Coca-cola até não agüentar mais numa “comunhão entre irmãos” ou tomar um cálice de vinho nas refeições? Comer como glutões desesperados e incrédulos ou ouvir uma música que revela as belezas da criação de Deus? Na grande maioria das conversas que tenho com irmãos de várias igrejas, a visão de mundanismo é reduzida por uma micro ética do "não beba", "não escute rock", "não assista novela" etc. Nesse processo de "mundanizar" tudo, negamos muitas bênçãos de Deus. Deixemos que o próprio Senhor nos oriente em Sua Palavra sobre o que deve ou não ser rejeitado.

9. A proibição com cara de espiritualidade é marca dos falsos mestre. Em 1 Timóteo 4.1ss, Paulo fala de ensinos de demônios. Esse ensino era caracterizado pela proibição do que Deus havia criado para ser recebido com ações de graça. Portanto, cuidado com proibições infundadas que imputam mundanismo em práticas não proibidas diretamente pelo Senhor em Sua Palavra. O interessante aqui é que o apelo de Paulo é dirigido à criação de Deus. Em outras palavras, esse mundo não do Diabo, é de Deus. Está afetado pelo pecado, mas é de Deus e há muito nele para ser aproveitado, ou seja, digno de ação de graça. Nas palavras de Michel Horton, "...não é necessário 'santificar' a arte exigindo que ela sirva aos interesses morais e religiosos da igreja. A criação é uma esfera legítima em si mesma" (O Cristão e a Cultura, p.23 - itálico nosso).

Conclusão

Cuidado ao falar em nome de Deus, onde o mesmo não se pronuncia. Em suas discussões, preze pelo que é claro, objetivo e proposicional nas Escrituras. Ela é a nossa prioridade. Contudo, a própria Escritura apela à nossa consciência (subjetivo). Cuidado, pois, em denominar "demoníaco" ou "mundano" o que condenado em sua própria consciência. A jurisprudência da consciência não ultrapassa os limites do indivíduo. Se ela (a consciência) diz que é mundano; é mundano para você - obedeça-a.

Quanto ao estilo musical, muito da chamada música "de Deus" é, na verdade, uma projeção da formação ou do gosto pessoal. E, portanto, deve tratada como pessoal. Se alguém encontrar o estilo musical de Deus; digo, os estilos musicais, avise-me, por favor. Enquanto isso, vou seguindo minha consciência. E você, siga a sua. Nessa questão, evite o julgamento (caso você não tenha "firme convicção") e o desprezo, caso esteja convicto na Palavra (cf. Rm. 14.3, 23). Suportemo-nos uns aos outros.

obs.: Dê uma olhada nos comentário(s) e resposta(s), ele(s) podem ser esclarecedores.

Serpentes falam?

Gênesis 3 nos apresenta um personagem intrigante: a serpente. Sempre me questionei quanto a sua natureza. Eis algumas questões que me incomodavam:

1) Como Satanás “tomou” ou "possuiu" o animal serpente antes do pecado entrar na terra (natureza)? O registro bíblico nos direciona a uma "ordem de importância" entre o homem e a criação. Todo sofrimento na criação é resultado do pecado do homem. Caso o animal tivesse sido "tomado", teríamos uma "inversão de valores". Ou seja, antes do homem pecar, a natureza já estaria afetada por Satanás. Contudo, seguramente, essa não é a maior dificuldade na interpretação dessa figura. Prossigamos...

2) Se foi Satanás quem tomou o animal, porque somente o animal sofre as conseqüências? E Satanás, onde fica sua punição? Se a punição à serpente é na verdade para Satanás, o texto está nos convidando a abandonar a literalidade da serpente/animal. Mas, se mantivermos a literalidade do animal, temos uma outra consideração a fazer:

3) Se a serpente aqui pertence ao reino animal, porque Cristo não pisou literalmente na cabeça de uma serpente? Colocando de outra forma: porque Ele não pisou na cabeça dessa serpente específica?

Uma proposta: Serpente não pode se referir ao animal, pois teríamos um problema quanto à ausência de punição a Satanás bem como com a natureza da aplicação dessa punição. Assim, "serpente" é mais um dos nomes para Satanás. Reconheço que essa proposta esbarra na idéia de que o texto bíblico refere-se a "serpente" como participante do reino animal. Algumas considerações poderão esclarecer a questão:

1. O texto não exige que a “serpente” pertença ao reino animal. Kaiser explica bem as sentenças “mais sagaz (“astuta”, ARC) que todos os animais selváticos” (3:1) e “…maldita és entre todos os animais domésticos e o és entre todos os animais selváticos” (v.14): “O hebraico min é uma partícula de distinção e eminência, não uma partitiva (“qualquer dos animais”); pelo contrário, é a forma comparativa (“mais do que os animais”). Nesta maldição, “a serpente” é distinguida de outras criações divinas, por exemplo, os animais, e separada para maior repreensão (KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 38).

2. A punição é direcionada a Satanás. Gn. 3:14 meramente assevera que a derrota dele era tão certa que haveria de “rastejar sobre seu ventre” (Gn. 49:17; Jó. 20:14, 16; Sl. 140:3; Is. 59:5; Mq. 7:17). Além disso, a situação desprezível e a sua abjeta humildade eram tão reais que lamberia o pó ou conforme dizemos hoje: “beijou o pó”. Ambas as frases seguem a expressão figurativa do oriente próximo antigo, representando seres humanos conquistados (cf. Sl. 72:9; Is. 49:23; Mq. 7:17). Se a serpente é literal, a punição deve acompanhar sua literalidade. Porém, os répteis não comem terra. Além disso, Deus já havia feito animais rastejantes e isso era bom (Gn. 1:25).

3. O NT não divide “Serpente” de “Satanás”, nem interpreta a Serpente como "tomada" por Satanás. O apóstolo João diz diretamente que Satanás é a antiga serpente. Ou seja, esse é mais um dos seus nomes (cf. Ap. 12:9; 20:9).

4. Não sabemos se a serpente recebeu o nome que tem por causa Satanás ou o contrário, o fato é o vocábulo traz a idéia de “astúcia” e "derrota" (rastejar). Ou seja, o animal serpente nos lembra duas verdades sobre Satanás (ou o contrário): sua astúcia e sua derrota. A sobreposição de uma em relação a outra traz grandes malefício como, por exemplo, o temor excessivo (ignorando sua derrota) ou negligência (ignorando sua astúcia). Quanto ao trato com Satanás, a derrota e a astúcia, portanto, devem ser consideradas com igual importância.

Há dois erros iguais e opostos no que diz respeito à matéria Demônios: uma é desacreditar em sua existência. A outra é acreditar e sentir um excessivo interesse neles. Os mesmos demônios ficam igualmente satisfeitos pelos dois erros e portanto, contemplam um materialista e um mágico com o mesmo prazer.

C. S. Lewis, prefácio à Cartas do Inferno

Cachaça na igreja


Quem já viveu ou conviveu no mundo da bebedeira, sabe muito bem que além de falar alto, boa parte dos ébrios fala muito. A despeito da variação de assuntos debatidos à mesa, podemos encontrar um conteúdo todo particular no grupo dos “inflamáveis”. Aqui queremos denominar toda a miscelânea de ditados, expressões e comportamentos particulares do mundo do álcool de “filosofia da cachaça”.

Para evitar maus entendidos, o termo “cachaça” não visa restringir a uma categoria dentro do grande mundo dos bebedores. Poderia ter escolhido qualquer outra bebida. A escolha pela cachaça revela a minha luta por uma expressão mais tupiniquim. Se vodka lembra a Rússia e o Whisky os escoceses, não se pode questionar a brasilidade da cachaça. Não que me orgulhe disso, minha escolha se deu mais por questões lingüísticas.

Resolvida a questão dos termos (algo quase inevitável nesse mundo pós-moderno) vamos à filosofia da cachaça. Comecemos por um dos grandes filósofos dessa corrente tão forte no nosso país, o famoso cantor Zeca Pagodinho. Ele personifica a filosofia muito comum entre os cachaceiros: “Faça o que digo e não faça o que faço”.

Em muitas das suas entrevistas, Zeca Pagodinho revela sua preocupação com a educação dos filhos e de outras crianças através de uma instituição criada por ele. Venhamos e convenhamos, é difícil para um sujeito que vive a beber (até na “Zeca-feira”) olhar para um filho e dizer: “Siga meu exemplo! Vá estudar! Controle-se! Seja disciplinado! Cuidado com o vocabulário!”.

Todo ser humano tem sempre um conselho a dar. Isso não é diferente para os participantes dessa corrente filosófica. Sóbrio ou não, o certo é  que sempre escutaremos um conselho dos “filósofos da cachaça”. O engano do grande garoto propaganda do álcool (como da maioria dos bebedores) é achar que a verdade pode ser apresentada de qualquer forma. Qualquer discurso verdadeiro associado com vida ou momentos de alcoolismo é desleal. Verdade exige lealdade e coragem. O que dizer de um policial bêbado? Que tal um discurso presidencial regado a cachaça?

Pensemos nas juras de amor e nas promessas feitas após algumas doses. Embora a declaração seja feita enquanto a língua se descontrola na boca acompanha de um olhar avermelhado, o bêbado crer que somente “suas palavras” (não sua vida, nem sua face distorcida ou seu descontrole etílico) devem ser consideradas.

Alguém pode rebater a ideia e dizer que muitas pessoas aceitam as palavras de um bêbado. Bem, há de se questionar a sobriedade de quem confia nas palavras “baforadas” de um ébrio. Mas isso é razão para outro artigo. Por hora, faço um esclarecimento: Não digo que toda promessa proferida por um bêbedo não se cumprirá. Só acho que confiar nelas não é sábio ou sóbrio.

E o que dizer dos que, enquanto sóbrios, são sinceros e bebem para obter coragem para proferir a verdade que “teima” em não sair? Bem, como podemos confiar em alguém que não tem coragem para expressar suas idéias? Esses podem até ter muita vontade de cumprir suas juras, mas como padecem da fraqueza e do medo dos covardes. Não podemos esperar muito deles.

Não podemos negar que muitos falam a verdade. O fato é que a verdade na boca dos bêbados não deixa de ser verdade, pois toda verdade é verdade de Deus, já dizia o reformador francês João Calvino. Se as verdades proferidas por um bêbado são tomadas como verdade, o mérito está na verdade e não em quem diz, pois “cara-de-pau” é um bom adjetivo para alguém que diz a verdade enquanto se veste de embriaguez. “Porque ‘cara de pau’”? Simples: Na hipocrisia há toda uma preocupação com as aparências. Hipócritas usam máscaras. O mesmo não pode ser dito de alguém que, por opção própria, cheira mal, anda com dificuldade e fala enquanto baba ou vomita. Bêbados não são hipócritas, são descarados.

Assim, uma das características da “filosofia da cachaça” é que seus grandes divulgadores destroem suas idéias com suas vidas. Ética e discurso são inimigos. Pensando bem, acho que isso não é exclusivo da turma do tira-gosto. Talvez com eles a questão torna-se mais gritante e absurda; “ridícula” é uma boa palavra. Mas a mesma incoerência entre discurso e vida pode ser encontrada outros ambientes. Penso até que podemos encontrar, sem muita dificuldade, “cachaceiros” na igreja também. Pessoas que tem sempre algo a dizer, mas suas vidas contradizem o seu discurso.

Vou mais longe. Acho que há mais um "elemento comum" entre os cachaceiros e alguns cristãos nominais além da incoerência entre vida e discurso. Assim como a turma do vômito, alguns membros de igreja eliminaram toda e qualquer preocupação com a imagem e/ou a reputação (o"bom nome" de Pv. 22:1). Como nos dias de Judas (cf. carta de Judas), para muitos, foi-se o tempo da hipocrisia na igreja; chegou a hora de ser "cara-de-pau". "Cachaceiro", mas de Bíblia; "libertino", mas na igreja, "bêbados", mas com bons conselhos, "errados", mas "certos".

Sejamos sóbrios! Busquemos uma vida não fingida (contra a hipócrisia, o tradicionalismo, o formalismo, o legalismo e toda teologia "sem coração" [cf. Mt. 15.8]) e, sem sacrificar o que Deus nos exige (amor, anuncio do Evangelho a todos...) em nome da própria reputação, cuidado com o bom nome (contra a negligência para com o testemunho).

Perfil

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Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.